quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Cães brancos



(Aviso: O texto a seguir revela trechos importantes dos filmes discutidos)

Interessante quando duas perspectivas cinematográficas completamente distintas se chocam num único dia. No último final de semana, tive a oportunidade de assistir a dois filmes que não poderiam ser mais contrastantes em suas propostas: Marley e Eu, de David Frankel, e Cão Branco, de Samuel Fuller. Por vias bem distintas, ambos tratam, a grosso modo, dos laços afetivos entre um cachorro e seu proprietário, e as conseqüências que essa convivência traz à vida do dono do animal. Frankel realiza um filme cuja decupagem e roteiro calculados seguem com devoção (e obviedade) os princípios do “filme-família”, popularizado principalmente pela Disney (o filme é da Fox). Desde a abertura, com Shiny Happy People na trilha sonora, o filme já diz a que veio. Nível de açúcar elevado ao cubo, à beira do irritante numa das cenas finais, do garoto assistindo às gravações do cachorro presente nos momentos alegres da família – no que pareceu uma clara imposição da Pedigree, marca de ração que patrocina o filme. Impressionante como o filme provocou uma reação em cadeia bizarra de choro e rostos vermelhos ao final da projeção – o que me faz lembrar de algo que Joel Coen disse certa vez, que odiava quando as pessoas choravam em filmes, e que era desconcertante para ele, enquanto assistia a um péssimo filme, ouvir as pessoas à sua volta assoando o nariz. É mais ou menos o que acontece aqui: uma catarse coletiva de lágrimas por nada. Claro que, a rigor, todo filme é uma manipulação da emoção, do olhar, feita pelo diretor. Mas em Marley e Eu manipula-se da forma mais rasteira possível – o que não se pode falar de Fuller, na outra ponta dessa estrutura.

Fuller em nenhum momento se mantém impassível, sua direção é sempre virtuosa, com o uso de super closes, câmera lenta, tomadas aéreas imponentes e arroubos de estilo impressionantes, como o ataque cuidadosamente orquestrado do cão a um homem negro dentro de uma igreja – a câmera desvia-se do centro da ação para um travelling que passa pelas imagens dos santos e culmina no vitral que remete à figura do pastor-alemão. A morte ocorre fora do quadro, à vista de todos os santos, como um sacrifício – e aí que reside toda a força de Fuller: o potencial dramático da cena é elevado às alturas, o contra plano do cão, ensangüentado e raivoso deixando o local, confere ao filme uma dimensão simbólica jamais encontrada num filme como o de Frankel, que apenas rechaça a imagem batida e constantemente reprocessada do animal brincalhão que acaba virando o elo mais importante da família. Fuller não deixa de manipular, mas ele recusa este tipo de identificação forçada com o animal, uma simpatia fajuta do espectador para com sua graciosidade. Claro que o cão, no filme do autor de obras-primas como O Beijo Amargo e Shock Corridor, não é o demônio reencarnado, afinal ele age condicionado àquele tipo de preconceito. Sua ferocidade aumenta conforme aquilo que lhe é imposto ou retirado por um adestrador. E o filme se torna ainda mais amargo e crítico do preconceito enraizado, nesse caso alfinetando com louvor a cultura estadunidense (os dardos jogados contra um pôster de R2D2 é emblemático), a partir do momento que o animal acaba por atacar e matar não seu treinador negro, mas sim o dono do recinto onde ele é readestrado, na cena final – a sua fúria só mudou de direção. E seu inevitável abate, com dois tiros no pescoço, e a imagem do cão estirado, morto, indefeso no chão que encerra o filme, é mais que suficiente para nos deixar a marca indelével de uma obra-prima. O labrador de Frankel morre como um príncipe; já o pastor-alemão de Fuller, como um moribundo. E, nesse caso, o moribundo é bem mais instigante.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Blaxploitation Mambo

Curioso quando dois conceitos se juntam sem motivo. Hoje, por circustâncias inexplicáveis, me veio à mente essa mistura, como um pára-quedas. Em que poderia resultar? Só sei que, pela sonoridade absolutamente incrível que as duas palavras produzem, bem poderia sair daí o título de um futuro musical dirigido por Quentin Tarantino - o que me inspirou a fazer essa arte bizarra. O que mais poderia sair dessa fusão? Algum remake de Rififi no Harlem? A questão está lançada!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Os bastidores das vinhetas de Hollywood

Interessante e curioso artigo sobre a história das logomarcas/vinhetas animadas dos estúdios de Hollywood. Desde o garoto pescador da Dreamworks, até a muher com a tocha, da Columbia e os leões da MGM. O escudo que representava a produtora dos quatro irmãos judeus fundadores da Warner Bros. foi o que mais sofreu nas reformulações. A abertura de Barry Lyndon, em que o "W" formado por três listras atravessa a tela, contrasta com o escudo dourado tridimensional adotado a partir da metade da década de 1980, usado em Nascido Para Matar, por exemplo.

domingo, 7 de dezembro de 2008

O Dia em Que a Terra Parou e o Eco Bullshit


Prestes a ser lançado nos próximo mês, com Keanu Reeves no papel do extraterrestre Klaatu (que foi de Michael Rennie no original), O Dia Em Que A Terra Parou, o clássico de 1951, de Robert Wise, é um filme de discurso intensamente diplomático e que marcou fortemente sua época – o pós-guerra que dava início a um grande temor de que um conflito atômico faria com que o mundo voltasse ao pó.

Robert Wise, conhecido por sua meticulosidade como editor de filmes mais que consagrados como Cidadão Kane, de Orson Welles, e O Corcunda de Notre Dame, de William Dieterle, conduz a história de maneira rápida e seca, não deixando muito espaço para o suspense. Já iniciamos com a descoberta de um invasor desconhecido nos céus de Washington D.C. – e todo o alerta de rádios e governos para o que está por vir.

Se antes a preocupação básica de um filme como esse era genuína por alertar para um período em que poderia haver ainda mais destruição e morte, da maneira mais brutal e insana que se poderia imaginar numa guerra nuclear, o remake que chega em janeiro aos cinemas já parece surgir defasado, ao menos em sua questão temática - o cenário do pós-guerra dará lugar à degradação ambiental. Não que a moda do enviromentalism, a preocupação ecológica que agora transborda no discurso de qualquer político ou empresário tenha passado – apesar de que, como moda, não vai demorar tanto tempo para que caia no esquecimento.

No novo filme de Scott Derrickson (que fez o razoável O Exorcismo de Emily Rose) Gort, de acordo com a sinopse no IMDb, vai deixar de ser um ator fantasiado de robô indestrutível e virar CGI. O problema é que, numa época em que Shyamalan fez de sua ameaça biológica algo assustador porque invisível, em Fim dos Tempos, e que os alertas eram produzidos pela própria natureza, a simples presença de uma dupla que serve de intimidação (robô) e discurso diplomático (Klaatu) viajar milhares de quilômetros justamente no intuito de fazer um alerta para a destruição da Terra (pelo aquecimento global?), soa terrivelmente datado – hoje não existe a limitação de informação pela carência tecnológica da década de 1950, e a hipocrisia impera e se alastra de forma alarmante justamente pelo excesso de discurso e da falta de ação.

George Carlin, um dos maiores e mais ácidos comediantes dos E.U.A, falecido em junho passado, satirizou toda esse circo que se faz em torno da sustentabilidade ecológica. Parafraseando-o, ele diz que o planeta agüentou furacões, tempestades, eras glaciais e terremotos por seis bilhões de anos, e não é a raça humana, que se industrializou há pouco mais de duzentos, que vai conseguir destruí-lo. O Klaatu atualizado por Reeves talvez soe como um Al Gore (cujo Uma Verdade Inconveniente, em DVD, vinha embalado num deplorável estojo de papel reciclado, mas mesmo assim continuava a R$ 40) e, tudo bem, o filme deve ser pouco mais que uma apresentação de slides. Mas todo esse eco bullshit não ajuda muito a elevar as expectativas. Veremos.

George Carlin

sábado, 6 de dezembro de 2008

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Pílluas Python (1)

Há pouco mais de duas semanas atrás, o hilário grupo de humor inglês Monty Python lançou seu próprio canal de vídeos no YouTube, conclamando os "youtubers" num vídeo de introdução muito bem-humorado a comprarem seus DVDs, depois de tantos anos publicando suas esquetes em vídeos de qualidade muito pobre - "For 3 years you YouTubers have been ripping us off... ". Uma das esquetes mais engraçadas é essa do genial John Cleese representando o "Ministry of Silly Walks", com sua forma muito excêntrica e absurdamente engraçada de caminhar:

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Ninguém é burro de graça


Segundo filme dos irmãos Joel e Ethan Coen a estrear neste ano no Brasil depois da obra-prima Onde Os Fracos Não Têm Vez, uma desconstrução do western – e do filme de ação tradicional, por conseqüência -, Queime Depois de Ler é a obra em que os diretores retornam com toda energia criativa a uma de suas melhores armas, que é o senso afiado de sarcasmo e humor-negro, para novamente implodir com as regras de outro (sub)gênero, o dos filmes de espionagem.

O roteiro segue um agente da CIA, Osbourne Cox, (John Malkovich) recém-demitido por seus “problemas com bebida”, que resolve registrar suas mágoas num livro de memórias. Armazenado num CD, é encontrado por uma peculiar dupla de instrutores de academia (Brad Pitt e Frances McDormand), os quais não hesitam em tentar fazer chantagem e dinheiro com o suposto tesouro que têm em mãos.

O CD é uma das melhores sacadas do filme, uma subversão do McGuffin que Alfred Hitchcock bem definiu como o artifício que leva a ação de um filme adiante. Os Coen, cientes disso desde a opção por satirizar o estilo do cinema de espionagem, nos rápidos zooms e na trilha sonora habilmente hiperbólica (as notas graves de bumbos que tão comumente se ouvem em filmes de suspense para sublinhar momentos de maior dramaticidade, aqui se rearranjam no que mais se parece com uma bateria de escola de samba), acabam por levar seus personagens a cometerem sandices inomináveis em busca de uma recompensa por algo que eles nem mesmo sabem exatamente o que é.

Uma das coisas, creio, que mais surpreende o espectador que vai assistir ao filme sem ter consciência do estilo empregado nos longas-metragens anteriores dos cineastas – que, sem dúvida, constituem uma obra de grande solidez e coerência -, é o emprego da violência gráfica como resultado inexorável da idiotice ou, para ser mais ameno, do impensado. Não é o tipo de comédia de redenção, de transformação da personalidade pelo erro. Aqui (e, numa visão macro, em toda a obra Coen), o erro não se torna aprendizado; ele é, na maioria das vezes, fatal. E isso, de maneira alguma, deixa de ser (cruelmente) engraçado, já que de fato ninguém é burro de graça – toda imbecilidade, em maior ou menor grau, tem seu preço.

Os coadjuvantes, como de hábito, também brilham em algumas participações minúsculas - o jogo de linguagem de Manolo, funcionário que acha o CD na academia, é sensacional: "I found it on the floor there. Right there on the floor there. Just lying there."

E o que coroa isso tudo (além da inesperada e hilária visita do casal à embaixada russa!), numa síntese mordaz da banalidade e da falta de discernimento da sociedade de hoje, é J.K. Simmons, num diálogo com seu subordinado na CIA em que discorrem sobre os destinos e as motivações de todo o arco de personagens e suas relações hilariamente intricadas. “Estou fodido se souber o que fizemos!”, exclama. Às vezes é melhor esconder tudo debaixo do tapete – uma lógica certeira e simbólica do Brasil (e não só dele), hoje e sempre. Pode não ter sido a intenção dos Coen fazerem um filme político – mas acertaram nesse alvo, e com louvor.


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Vicky Cristina Barcelona - e Woody Allen


Woody Allen, com seu regime de produção de um filme por ano desde a década de 1970, nos surpreende sempre com esse seu método de trabalho. E é exatamente a irregularidade surgida da sua prática intensa que nos faz acompanhá-lo sempre com grande interesse. E uma das razões para isso é o seu texto, que mesmo quando serve a filmes completamente insossos como Scoop e Sonho de Cassandra, é um artigo de rara qualidade dentro do marasmo da indústria.

O piadista do Brooklin, como ele se auto-define, maneja as palavras com incrível habilidade e fluidez. Seu texto corre pela tela de maneira muito solta, leve, e suas frases carregam consigo a sutileza de um humor que passa longe do escracho, mas é auto-reflexivo o suficiente para estabelecer uma forte ligação das neuroses de seu autor com as do espectador. E isso ele alcança com sucesso, pois queira-se ou não sempre estamos assistindo a um filme seu com um sorriso no canto da boca, mesmo quando o humor não esteja explicitado pelos diálogos, mas pelas situações. Mesmo em suas incursões recentes pelo suspense, em Cassandra e Match Point, onde aparentemente as risadas não tinham lugar cativo no roteiro (até tinham, mas em doses homeopáticas, digamos), elas se revelavam na medida em que o baixinho nova-iorquino ironizava o destino de seus personagens, que se afundavam na própria hipocrisia - como no caso dos irmãos em Cassandra e no triângulo amoroso de Match Point.

Até que chegamos a Vicky Cristina Barcelona, a mais recente obra de Allen em que ele volta para sua verve cômica, mas que não deixa de lado essa reflexão um tanto quanto desiludida – mas não trágica - sobre o destino. A aventura romântica que ele retrata aqui, não mais em triângulo, mas num quadrado amoroso, é bastante apropriada para mais uma mudança de ares em seu cinema: da Inglaterra diretamente para Barcelona, Espanha, terra cuja atmosfera de sexualidade intensa Allen investiga com um olhar de turista que quase escapa para a caricatura, mas que se mantém apropriado graças ao desenvolvimento da narrativa e de suas atrizes americanas (as estonteantes Rebecca Hall e Scarlett Johansson) que vão passear pela Europa.

O filme passa voando com um Javier Bardem sensacional na pele de um pintor galanteador que chega a ser acusado pela ex-mulher de temperamento suicida – e também pintora (Penélope Cruz, em versão Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos) - de ter roubado seu estilo. Todas as discussões, claro, misturam o espanhol nativo dos dois com o inglês – em diálogos que revelam algumas das melhores piadas do filme.

Vicky Cristina Barcelona, na verdade, é um fluxo de pessoas (amantes) se entrecruzando, mas sem o menor compromisso com artimanhas de roteiro, que burlariam qualquer graça e prazer que o filme expressa e nos faz sentir como espectador. Talvez esse mecanicismo da escrita seja uma das razões do marasmo criativo por que passam as tais comédias românticas de hoje. E Allen, com sua desenvoltura sem tamanho, supera isso com os pés nas costas.


domingo, 16 de novembro de 2008

Última Parada 174

174: Barreto a serviço de nada

Engraçada essa proposta de Bruno Barreto, de ficcionalizar a vida de Sandro do Nascimento, que seqüestrou o ônibus da linha 174, no Rio de Janeiro, há oito anos. Impossível esperar muito de um filme cuja temática foi explorada com vigor e autenticidade invejáveis por José Padilha em Ônibus 174, documentário que investiga com afinco a situação social e emocional que culminou na tragédia de 2000, sem apontar “culpados” ou “vítimas”, ou mesmo oferecendo explicações de didatismo hipócrita. E mesmo com expectativas lá em baixo, não esperaríamos que Bruno Barreto cometesse um porcaria tão grande quanto esse Última Parada 174. Ou será que isso já era mais do que certo?

Com roteiro raquítico de Bráulio Mantovani, Barreto parece ter dirigido o filme pelo celular. O longa se inicia com os letreiros “Um menino chamado Alessandro” e “Um menino chamado Sandro”, prova de quanto as engrenagens daquela escrita estão expostas. As cenas pulam da favela para a cadeia, da cadeia para a rua, e se alternam tão mecanicamente que, quando finalmente chega o momento do acontecimento fatídico dentro do ônibus, o filme termina de se afundar na sua própria armadilha. Barreto filma as externas do veículo seqüestrado exatamente nos mesmos ângulos nos quais as câmeras de TV, no dia da tragédia, se fixaram incansavelmente. Ele reproduz a estética sensacionalista da televisão de maneira grosseira, mudando a textura da imagem para que o público espectador encontre, talvez, algum tipo de ligação naquele discurso, lembrando que estamos o assistindo a uma encenação fiel aos fatos “como eles ocorreram”. Um diretor que nivela tão por baixo a inteligência de seu público realmente não merece uma gota de credibilidade.

Outra evidência da fraqueza do filme está numa linha de diálogo de uma das personagens envolvidas no seqüestro: com uma canastrice impressionante, a mulher diz a Sandro: “Sabe quem é a maior vítima disso tudo? Você!”, num tom canhestro de filosofia de boteco. Michel de Souza, que interpreta Sandro, sofre com essa novela das oito que Barreto propõe. O ator é intenso, mas essa intensidade parece uma manobra equivocada de Barreto para tentar imprimir ao filme uma importância que ele definitivamente não tem. É o típico filme de diretor preguiçoso – é só assistir (ou não!) a desastres como Bossa Nova e Voando Alto para confirmar essa tese. E a cena final, bom... É o tipo de “surpresa” que faz você querer pedir a esmola de R$ 2,00 da meia-entrada patrocinada pela Ancine (na promoção que deixa o cinema brasileiro “mais perto de você”) de volta. É de deixar Moacyr Góes constrangido.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Kubrick Revisited


Dá uma vontade iressistível de compartilhar tudo que acabo de ler em Kubrick: De Olhos Bem Abertos, de Frederic Raphael (roteirista do último filme de Kubrick), mas prefiro deixar o deleite para quem não leu ainda comprar e se esbaldar no processo criativo do maior cineasta da história que, não à toa, dá nome a esse blog. É uma personalidade fascinante que, com sua despretensão e talento monstruosos construiu obra única e incomparável. Recomendável rever todos os filmes de Kubrick após a leitura - ou melhor, todo motivo é pretexto para se mergulhar novamente no universo kubrickiano.

Um aperitivo:

S.K.: [sobre A Lista de Schindler, de Spielberg] Aquilo era sobre o sucesso, não acha? O Holocausto é sobre seis milhões de pessoas que foram exterminadas. A Lista de Schindler é sobre seiscentas pessoas que não foram.

Fucking genious.




segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Sobre o domínio de cena

Penso que todo cinéfilo que se preze tem a obrigação de prestar uma homenagem a Marlon Brando, seja ela de que forma for. A minha vai agora, neste relato. A cena entre o seu personagem, Terry Malloy, e seu irmão Charley (Rod Steiger), no carro, no magnífico Sindicato de Ladrões, prova que um grande ator se faz com um simples movimento: ao apontar a arma para o irmão, Brando exibe um equilíbrio digno de um gênio máximo da atuação. Não se exalta, não agride, mas empurra a mão de Steiger com delicadeza impressionante: “Oh, Charley!”, ele diz profundamente triste e desapontado. Solta um suspiro e vira o rosto, logo após. É fulminante o impacto emocional que Brando causa, e pelo qual desorienta por completo o irmão. Brando joga pela janela qualquer artifício de roteiro ou direção – e o próprio Elia Kazan, diretor, conta no documentário que acompanha o DVD do filme que praticamente não dirigiu a cena, deixou que Brando dominasse a tela. E como ele domina.

sábado, 18 de outubro de 2008

De outro mundo



Às vezes, por mais que se tente relatar uma experiência sensorial, somos sabotados pela falta de palavra à altura para descrevê-la. Em cinema, principalmente, um filme como Vá e Veja, de Elem Kimov, utrapassa qualquer tentativa de racionalização, tamanho é o poder de imagens como estas que posto aqui (e do som, absolutamente genial). A cena referente ao rosto ensagüentado da menina, especialmente, é de se perturbar irreversivelmente. Assim como todo o filme, permeado por essa expressão de mais puro e autêntico horror do ator Aleksei Kravchenko - e o lirismo de algumas cenas, em contraste, torna tudo ainda mais potente e aterrador. Coisa de outro planeta. Corram para essa ótima edição em DVD que a Lume Filmes lançou por aqui no final de setembro. Uma das maiores jóias que se pode ter em qualquer coleção - ou melhor, um monumento.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Sidney Lumet: 84


Sidney Lumet aniversaria hoje, e nada mais justo do que uma pequena, mas franca homenagem a essa grande figura do Cinema, cineasta de estio e capacidade de encenação impressionantes. Pouco antes de completar os 84 anos de hoje, dirigiu a mais recente obra-prima, Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, um filme extremamente brutal na sua maneira que retrata a derrocada irreversível de uma família. O vigor que Lumet demonstra aqui, na rigidez dos enquadramentos, nas atuações perfeitas (destaque para o mestre Albert Finney), na montagem cuidadosa que revisita o mesmo acontecimento sob diferenciados pontos-de-vista (recurso usado com o amadurecimento que lhe torna absolutamente necessário), é digno de alguém que não só tem o domínio cênico completo daquilo que filma, mas a vivência de oito décadas para dar sustentação e robustez dignas de um roteiro que as mereça (do estreante Kelly Masterson).

A sua formação teatral lhe permitiu construir uma obra pautada sobretudo pela força do diálogo, das expressões, onde absorvia o máximo de dramaticidade que lhe era possível. Em 12 Homens e Uma Sentença, realizou um dos filmes mais importantes sobre o poder do convencimento, da argumentação – sem sequer sair de uma sala de júri, durante quase duas horas. O que nos fazia vislumbrar o mundo exterior era Henry Fonda, ator que com sua expressão serena, tranqüila, questionou a decisão de se condenar uma criança à morte, através de falas ditas com tanta riqueza de detalhes, de maneira tão sensível e orgânica, que era praticamente impossível não reconstituir na mente, naquele momento, a cena do crime. Era o poder imenso da atuação e da palavra como maneira de nos transportar para outro campo imagético, sem, no entanto, redundar de forma alguma em um único fotograma que banalizasse a descrição.

Fonda ali praticamente personificava Lumet como diretor: confiava no poder do seu argumento, engenhoso, equilibrado, forte, vivo – mas sem nunca chamar atenção para si. Meus sinceros parabéns ao grande Sidney Lumet, e que venham ainda muitas obras fundamentais como essas que possam nos marcar pelas palavras, pelas expressões e pela autenticidade.


sábado, 7 de junho de 2008

Imersão e referência em Kubrick e Herzog


Impressionante como alguns cineastas têm a capacidade quase que sobrenatural de desprover sua imagem de qualquer atributo referencial e transportá-la a um universo particular onde fica em constante estado de sublimação e imersão. Kubrick foi assim, especialmente em 2001 e Barry Lyndon. Claro, tínhamos as "referências": o deserto e o espaço, e a Inglaterra do século XVIII, respectivamente. Mas elas se perdem, em determinados momentos de cada obra, para dar lugar ao completo estado imersão pela qual, a essa altura, nós espectadores já fomos completamente tomados. Perdemos a capacidade de construir associações costumeiras entre lugares, pessoas ou estados de espírito, quando normalmente nos expomos à imagem cinematográfica. Isso me veio quando vi, em seguida, três obras seminais de Werner Herzog (e de todo o Cinema): Aguirre - A Cólera dos deuses; Nosferatu - O Vampiro da Noite e Fitzcarraldo. Como em Kubrick, são obras que levam o espectador a outro nível de percepção audiovisual: quando nos deparamos com um barco a vapor de 300 toneladas sendo içado morro acima, na Amazônia peruana (taí outra referência que rapidamente dá lugar ao "imersivo"), sentimos que aquilo ultrapassa qualquer noção pré-estabelecida do que é preparar, filmar ou mesmo, "receber" uma imagem como aquela. Engraçado que o próprio Herzog, gênio que é, declara num dos documentários que acompanham o DVD de Aguirre que a nossa percepção do filme não pode ser afetada pelos aspectos extrínsecos do mesmo: se levássemos em conta todo o trabalho hercúleo de elaborar uma cena como a descrita, ou mesmo os constantes e intensos conflitos de Klaus Kinski (ator com talento maior que o mundo) com o diretor e a equipe, nossa visão daquilo que presenciamos na tela seria outra; em outras palavras, Herzog diz que o filme tem de se bastar como filme, como o resultado da conjunção imagem-som, e tirar daí sua força. Mas é impossível. O que Herzog, assim como Kubrick, nos causa, é aquela sensação de estar preso ao filme, assim como ao seu histórico, e ao fascínio da descoberta de todo seu processo de produção e formação. Enfim, os filmes de ambos, ao privilegiarem o imersivo em detrimento do referencial, se tornam, paradoxalmente, referências artísticas atemporais.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Losey encontra Polanski


Losey e Polanski: espaços vivos

Não sei o que, à primeira vista, poderia ter em comum Joseph Losey com Roman Polanski. Mas vendo O Criado (The Servant, 1963), há dois dias, me veio à mente com tremenda força a “trilogia do apartamento”, como foi assim batizada a bela trinca de filmes do cineasta polonês, composta por Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino.

Em comum, claro, a elegância da câmera indubitavelmente virtuosa, quase que intrusiva. Com brilhante roteiro do escritor prêmio Nobel Harold Pinter, que também faz ponta aqui, o filme se desenrola com extrema inventividade: já na primeira cena, o filme nos dá uma belíssima pan que culmina na chegada de Hugo Barret (um Dirk Bogarde genial, quase fantasmagórico) a casa ainda em construção de Tony (James Fox), na qual residirá e trabalhará como criado.

Tony o espera dormindo numa cadeira, e o filme constrói, a partir daí, um jogo de relações explosivo. Não é tanto aqui a inversão de valores entre empregado/patrão que mais impressiona, mas sim a culminância de todos os conflitos daí surgidos num terceiro ato incrível e surpreendentemente surreal, no qual se instaura uma atmosfera sufocante de vulnerabilidade.

Esta conclusão pareceu estar em perfeita sintonia com a última cena de O Bebê Rosemary, por exemplo, onde o clima conspiratório/paranóico se mistura estranhamente com a possibilidade terrível de tudo aquilo ser real. Tony, em O Criado, sucumbe àquela presença assustadora e deixa transparecer sua fragilidade de maneira quase constrangedora. Mia Farrow, do lado de Polanski, também se mostra vulnerável com todo o fardo que pensa estar carregando em seu ventre.

Interessante o diálogo que se estabelece entre esses filmes (não só entre O Criado e Rosemary, mas com toda a trilogia de Polanski), todos com seus ambientes cuja espacialidade ganha contornos incrivelmente vívidos, onde personagens são “absorvidos” e caem numa derrocada emocional inquietante.

sábado, 26 de abril de 2008

Algumas pérolas

Acabo de ver o Como Era Verde Meu Vale (1941), e mais uma vez fiquei estupefato com a mão de John Ford para um melodrama que realmente se despe de qualquer artifício maniqueísta para prender o público às suas belíssimas imagens, trabalho primoroso do fotógrafo Arthur Miller. As atuações de Donad Crisp, Maureen O´Hara, Walter Pidgeon e do garotinho Roddy McDowall são contidas e, exatamente por isso encantadoras. Mais uma vez me lembrei de Sangue Negro, no drama dos trabalhadores de uma mina de carvão - e as internas deste ambiente mostram decupagem primorosa, como na cena em que a câmera acompanha o garoto empurrando um carrinho de carvão. É um drama familiar, contado em flashback de forma brihante pelo garotinho Huw (McDowall), que descreve suas memórias dos 50 anos que passou no vilarejo - a primeira cena já impressiona pela riqueza de significado, com um movimento de câmera que começa com o personagem de McDowall empacotando suas coisas e vai em direção à janela, num belíssimo plano, semelhante ao que se tornaria marca registrada de Ford em Rastros de Ódio, com Ethan Edwards, personagem de John Wayne, em frente à sua casa, ao final do filme, quando dá as costas e vai embora.

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Outra pérola é Desafio à Corrupção (1961), lançado recentemente numa edição sensacional pela Fox, em DVD Duplo. Aqui Paul Newman e George C. Scott brilham sob a batuta do grande Robert Rossen, que faz dos salões de sinuca verdadeiros palcos de onde surgem conflitos explosivos. As jogadas são realçadas de forma genial pela montadora Dede Allen, responsável por injetar frescor, ritmo e estilo inconfundíveis na edição de marcos dos anos 60 como Butch Cassidy e este e, nos anos 70, sua parceria com o diretor Sidney Lumet rendeu duas jóias: Serpico e Um Dia de Cão, ambos estrelados pelo grande Al Pacino.

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Outro Paul Newman brilhante está em O Indomado (1963), de outro diretor minucioso, Martin Ritt. Aliás, é um filme que contém uma das cenas mais arrebatadoras já filmadas: o abate do rebanho do personagem de Melvyn Douglas, indefectível como pai de Hud Bannon (Newman). É o tipo de filme que deixa o espectador atônito pela sua construção milimétrica, tanto na estética impecável quanto em sua narrativa, um primor de desenvolvimento de personagem. A batida de porta ao final (ou melhor, toda a cena) é perfeita, sela com precisão a ambigüidade de caráter de Hud - o tipo de "homem sem princípios", o canalha que conquista pela sua lábia e simpatia; um tipo de personagem que se tornou recorrente no cinema americano. Bela luz do chinês James Wong Howe, o mesmo de A Embiaguez do Sucesso.

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Scorsese brilha em No Direction Home (2005), na sua habilidade inigualável de juntar 4 horas de entrevistas e imagens de arquivo sobre a vida de Bob Dylan num documentário de vivacidade incrível - mesmo Dylan sendo por si só uma verdadeira máquina de transformação (ou melhor, transição), o que o transformou num ícone, com sua voz esganiçada e suas composições que público e crítica insistiam ser atreladas a algum tipo de engajamento político - e que ele negava com a maior naturalidade do mundo. Scorsa monta um painel amplo sobre sua persona e todo o cenário musical que o rodeava, os festivais folk, as entrevistas (onde chegavam até a perguntar a filosofia por trás das camisetas que ele usava nos shows), raras cenas de bastidores e, pessoalmente, um dos momentos-chave ocorre quando Bob, na rua, começa a fazer um jogo de montar frase/refrões musicais com as palavras das placas que observa. Imperdível.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Depois do grande hiato

Coen cool!

Bem, aqui estou eu de novo depois de dois meses distanciado. Mas não parei: vi mais Polanski, o novo dos Coen (duas vezes), que é simplesmente um dos melhores da década, sem um pingo de exagero, Sangue Negro, outra coisa fabulosa e ácida de Paul Thomas Anderson. Estou lendo Luz em Agosto, de William Faulkner (aliás, alguém sabe se existe alguma adaptação dessa obra para o cinema?), um tremendo livro, de uma estrutura impressionantemente densa e rica em seu entrelaçamento de histórias e rumos, além das palavras de Faukner que parecem ter sido lapidadas à exaustão, mas paradoxamente são de uma naturalidade e fluidez sem iguais. Bom, pretendo escrever mais detalhadamente minhas impressões sobre No Country For Old Men, o filme que mais esperava pra ver nesses últimos meses (quase 1 ano) desde que li a jóia que é o romance de McCarthy, e que me satisfez plenamente, superou minhas já ótimas expectativas e fechou com chave-de-ouro na última cena, Tommy Lee Jones arrebatador, num monólogo que já grudou permanentemente na minha memória - mesmo tendo sido quase que totalmente transcrito do livro. E um "Bravíssimo" aos genias irmãos Coen, faturando suas estatuetas de filme e direção com sua tranqüilidade e humor sensacionais: "Isso aqui não é muito diferente do que fazíamos quando crianças!"

O genial xerife melancólico de Tommy Lee Jones



segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

James Cagney: a energia em estado bruto


Ainda não conhecia o trabalho deste grande ator, que imediatamente se tornou um de meus prediletos. É impressionante o grau de magnetismo que Cagney consegue instaurar no espectador, com sua persona enérgica e sua imprevisibilidade que impressionam e surpreeendem. É extremamente expressivo, e seu trabalho, ao menos em três filmes fenomenais como Anjos de Cara Suja, Heróis Esquecidos e Fúria Sanguinária, não demonstra comedimento, mas é expansivo no melhor sentido do termo. Longe de ser exagerado, Cagney consegue fazer de seus diálogos e gestos mais do que meros recursos linguísticos: são espaciais, preenchem os sets e a tela com carisma e autenticidade absolutamente contagiantes. Seus embates travados com Pat O´Brien em Anjos..., assim como a cena final desse filme são inesquecíveis exemplos de como um ator consegue conquistar uma platéia com apenas um pequeno levantar de sobrancelha, ou apenas com sua sombra projetada na parede, e seu pedido de piedade ao fundo, no corredor da morte. Aliás, até quando não está em cena, Cagney tem o poder de impor sua energia: quando está na cadeia, em Fúria Sanguinária, e vemos os esforços de sua mãe para tentar manter o respeito e a reputação de seu filho perante seus capangas, ficamos com a sensação de que o personagem de Cagney está ali, não fisicamente, mas apenas sua personalidade e sua força expressiva, pronta para ser extravasada a qualquer momento. E a cena no refeitório da prisão, quando a notícia da morte de sua mãe passa de ouvido em ouvido, e silenciosamente chega até ele? Incrível. Méritos a Raoul Walsh, claro, mas quem consegue controlar um gênio desses? Cagney parece ser à prova de diretores, ele chega "ao topo do mundo", como diz seu personagem, sozinho. Até Humphrey Bogart em Heróis... fica tremendamente ofuscado perante presença de cena tão intensa. Certamente um dos maiores atores de todos os tempos. O cara não é brincadeira. Lembrei muito de Joe Pesci e Jack Nicholson enquanto via esses filmes, outros dois fantásticos atores que, suponho, devem a Cagney muito dessas belas descargas elétricas que conseguem realizar em cena.
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P.S.: Sim, obrigado pela lembrança Daniel. Como me esqueci de Malcom McDowell? O próprio confessou sua predileção por Cagney num dos documentários que acompanham a edição dupla em DVD de Laranja Mecânica. De quem mais McDowell poderia tirar inspiração para tanto carisma e domínio de cena? Na mosca.