segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Medo primitivo














A força de Atividade Paranormal reside na sugestão. Não que isso seja novidade num filme feito em regime de guerrilha, com estimados US$ 10 mil de produção. O que o diretor Oren Peli faz aqui, afora alguns truques dispensáveis (como as frases que abrem e fecham o filme, querendo baseá-lo em uma tragédia “real”), é basicamente um belo trabalho de tempo e esquadrinhamento de espaço. Na essência, é do que o terror precisa.

A Bruxa de Blair, há dez anos, foi magistral nesse quesito. Numa época em que o mundo ainda não era infestado pelo (hoje famigerado) marketing viral, os diretores Daniel Myrick e Eduardo Sánchez conseguiram fazer do filme em si uma lenda urbana. Este primeiro filme de Peli não conseguiu o mesmo feito, até porque de dez anos pra cá a Internet evoluiu de maneira assustadora e seus mecanismos, ao menos no quesito propaganda, foram fartamente expostos. Mas foi (e está sendo) um sucesso abissal de bilheteria, porque o que nos aflige, afinal de contas, é o medo do escuro, do desconhecido, tão primitivo quanto autêntico.

Atividade Paranormal mantém intacto o espírito de curiosidade e de expectativa dentro de sua narrativa. Os casal protagonista está em constante busca para registrar aquilo que os assombra – o rapaz, pela curiosidade, e a garota, pelo real pavor que aquilo provoca e já a importunou em experiências passadas. É um argumento que fascina pela simplicidade, e Peli o aproveita muito bem. Um exemplo: o médium, arquétipo tão presente em filmes do tipo, aparece como um homem que não quer arriscar o pescoço na área que não é sua: é especialista em fantasmas, não em demônios. Os dois ficam, então, à deriva, tendo de lidar sozinhos com aquilo que desconhecem. Tão básico quanto eficiente.

A relação do casal de namorados é construída naturalmente e com muita verdade. Não à toa, um dos melhores momentos é aquele em que o rapaz, Micah (Micah Sloat) procura apavorado pela namorada, Katie (Katie Featherston), e a encontra, desolada, num banco na área externa da casa.

Extrair autenticidade daquilo que se mostra aparentemente banal é o maior dos elogios que se pode fazer ao filme – principalmente quando o plano que o representa, composto de uma porta aberta e uma mulher a beira da cama, estática, nos aflige muito mais que qualquer apocalipse milionário de Hollywood.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Cinema pleno (Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino)

Arma poderosa, esse tal de Cinema

Talvez seja algo de anacrônico comparar a ida ao cinema para um novo filme de Quentin Tarantino com a volta numa gigantesca montanha-russa, ou um vôo rasante, perigoso e inesquecível por entre as cataratas do Iguaçu, com algum monoplano antigo, mas poderoso. A espera, o momento anterior à experiência já vem carregado de uma ansiedade contagiante.

Assim, desde o momento em que o filme se abre com a logomarca antiga dos estúdios Universal, usada na década de 1980, sabemos que algo especial está por vir. Em agosto, Sam Raimi já a utilizou em Arraste-me Para O Inferno, e o que se seguiu foi uma agradável surpresa em formato matinê, um terror cômico cuja âncora era a habilidade do diretor em remexer os clichês do gênero sempre com um sorriso de canto de boca para cinéfilos.

I bid your 'adieu'!

Se Raimi reprocessa com tanto prazer sua cinefilia, impossível delimitar o nível de amor que Quentin Tarantino coloca em seu Bastardos Inglórios. Não é o simples deleite pela imagem: o que o diretor de Jackie Brown faz aqui é elevar a experiência cinematográfica ao patamar da celebração. Não à toa, o jogo é elemento essencial da narrativa desde a cena de abertura, quando o herr colonel poliglota Hans Landa da SS nazista, interpretado por Christoph Waltz (gênio, que só faltou fazer miséria com iídiche), invade sutilmente a casa de um fazendeiro na França ocupada, em 1941, em busca de judeus escondidos. O embate verbal que ali se instaura é montado com rigor jamais visto na obra de Tarantino, de modo que o espectador se vê imerso nesse duelo como mais um de seus participantes.

O filme dentro do Filme, "Stolz der Nation"

Claro que jogar com o público não é novidade na obra de um autor que detém talento incrível para a musicalidade das palavras e da encenação. Mas aqui Tarantino está mais afinado que nunca na sua jornada para construir e enriquecer dramaticamente um universo muito próprio, principalmente no senso de humor sofisticado que demonstra. Quando o coronel de Waltz reafirma sua superioridade ao tirar do bolso um cachimbo insanamente maior, mais extravagante e colorido que o de seu oponente (aliás, Denis Menochet, o ator que faz o fazendeiro francês Perrier LaPadite, é outro gigante), a gag de Tarantino acaba por ser tão engraçada quanto cruel, já que se impõe ao personagem nazista como um último desafio/jogo moral, fulminantemente vencido, expondo a fragilidade de seu interlocutor de maneira desoladora - e há alguém melhor para musicar a desolação senão Ennio Morricone? Será que sobra alguma alma pra chamar Tarantino de superficial?

Ainda nessa introdução, ficamos sabendo que da família refugiada sob o assoalho de LaPadite apenas uma garota conseguiu fugir: Shosanna Dreyfus. Três anos depois, a personagem interpretada por Mélanie Laurent (magnética em todos os sentidos) se torna proprietária de um cinema em Paris, num desenlace que escancara a paixão avassaladora do realizador tanto pela materialidade do cinema (película, bobinas, nitrato) quanto pela experiência que é ver Pabst, Max Linder ou Leni Riefenstahl na tela grande.

Enquanto isso, Tarantino faz jus ao título do filme com Brad Pitt e seu grupo de soldados judeus fazendo da guerra uma questão muito particular. A marca profunda de uma suástica feita na testa dos nazistas que escapam vivos da tropa (como gados marcados a ferro e fogo) é algo bem perturbador, e se aqui não jorra sangue como em Kill Bill, a brutalidade vem carregada de carga simbólica muito forte. Outra prova disso é a seqüência da taverna, a qual parte de um jogo de adivinhação por cartas e culmina em banho de sangue. Ali, a troca de sinais, sejam eles de qualquer natureza, é traiçoeira, os disfarces começam a sufocar e, de uma vez, todos caem no chão. O exterminador de oficiais da Gestapo Hugo Stiglitz (Til Schweiger) é notável nesse ponto: os cutucões que ele recebe de um major nacional-socialista (August Diehl) na mesa do bar emulam uma falsa camaradagem, logo associada à tortura – e no primeiro sinal que tudo dará errado, ele estoura os colhões do outro e crava-lhe logo uma faca no pescoço com o prazer de quem conseguiu o selo que faltava à sua coleção.

O filme, não poderia deixar de ser, tem seu clímax no cinema de Shosanna, na sala particular de Tarantino (“Le Gamaar”), talvez a verdadeira musa de sua obra até agora. A paixão com que cada cartaz na parede é colocado em quadro, a valsa da grua que valoriza as escadarias, o hall, a movimentação dos espectadores pelo espaço, os detalhes – nada foge ao abraço generoso desenhado pela câmera febril do cineasta e de seu fotógrafo, Robert Richardson. Dá vontade de morar ali naquela sala de projeção, ouvindo a voz da judia francesa ecoar ameaçadora, com seu rosto imenso ainda sobrevivendo no meio do fogo, materializando-se na fumaça que reflete a luz dos projetores – a imagem de cinema viva e plena como nunca.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A ficção sufoca no cinema de David Cronenberg

Não é nada menos que instigante acompanhar a carreira de um grande cineasta como David Cronenberg. A sua filmografia se mostra notável pela característica expressionista que o diretor canadense imprime a cada um de seus filmes – uma coleção de peças audiovisuais que não poderia ser mais coesa na maneira como respira a marca do autor e, por outro lado, tão distinta e particular na maneira como o cineasta a lapida em cada nova obra.

Esse tipo de observação, a de se assistir aos filmes num continuum, é rica no que concerne em afiar o olhar, o olhar cinematográfico: a evolução de uma obra que apenas troca suas ferramentas para falar dos mesmos conceitos, sem significar perda de intensidade do discurso e da representação. É uma espécie de fascinação cinéfila vasculhar os velhos baús de alguns cineastas pelos quais nutrimos imensa estima.

A experiência pode não ser regularmente prazerosa, apesar de sempre estimulante, como é o caso de Crimes of the Future (1970), o segundo longa do canadense, que se concentra numa espécie de investigação sobre doenças, secreções e a maneira estranhamente instintiva com que alguns internos da clínica em que ele se passa são levados a lambê-las. Essa filmografia, aliás, deixa forte a impressão de que Cronenberg é um grande cineasta dos instintos. Mais do que sua saudável obsessão em explorar os limites do corpo – e estendê-los fantasticamente quando lhe convier para explorar novas potencialidades -, o que se vê na maioria desses dezoito longas-metragens são personagens imersos numa angústia excruciante na tentativa de lidar com um sentimento primal, impulsivo – explosivo.

E é exatamente nesse ponto que sua obra pode criar problemas para muitos espectadores: Cronenberg lida com suas construções dramáticas com tanto fascínio – o fascínio de um cirurgião (plástico?) – que não mede esforços para exprimi-lo. Cenas como a de uma personagem regurgitando parasitas em Calafrios (1975), a mãe que lambe sua cria monstruosa em Filhos do Medo (1979), ou os dolorosos duelos de paranormalidade de Scanners (1981), definitivamente não são para todo tipo de cabeça e estômago. Mas são momentos que chegam ao espectador com a absoluta autenticidade de um autor na sua plenitude criativa – e, não à toa, a fita de 1979 se conclui com um super close nos olhos de uma criança: a verdade está toda ali. Não explicitar o resultado de um ferimento, a conseqüência de um tiro, ou a deformidade de um corpo, é negar o que essencialmente move o referido cineasta a exercer sua arte.

O desconforto perante as imagens de Cronenberg é, portanto, inevitável; por vezes, quase insuportável. Quando o espectador chega ao último plano de Enraivecida Na Fúria do Sexo (1977), de uma crueldade e tristeza indescritíveis, sentimos como se tivéssemos escapado de um tortuoso caminho de vidro moído – imagine o labirinto de Kubrick em O Iluminado (1980) transfigurado, o solo e as folhagens recobertas de cacos, com o mesmo Jack Nicholson rastejando na sua loucura ofegante. Talvez a mesma sensação desesperadora de Jeremy Irons quando acorda, em Gêmeos – Mórbida Semelhança (1988), e vê seu irmão eviscerado à sua frente. Não é brincadeira.

Um filme que merece parágrafo à parte é Fast Company – A Escuderia do Poder (1979), que à primeira vista se revela como uma anomalia na carreira de alguém que sempre foi tão hard ao exercitar seus músculos criativos. Quase uma paródia de clássicos como Corrida Contra O Destino (1971), de Richard Sarafian, ele acaba nos ganhando pela decupagem fetichista de alguns planos – e é neles que vemos, por mais embaçada, uma identidade cinematográfica irrevogável. A música-tema ridiculamente brega, as relações interpessoais que chegam ao limite do caricatural (empresário corrupto-corredor prestes a aposentar-vilões gordos e barbudos que arquitetam vingança) nada mais são que o sketch básico para o autor canadense moldar sua veia de narrador clássico. É a ponte irregular, mas definitiva, entre os antológicos Enraivecida... e Filhos do Medo.

E se Cronenberg deu vida e subverteu as velhas teorias da comunicação bem à sua moda em Videodrome (1983), através de cenas emblemáticas como a TV que “engole” a cabeça dos espectadores numa parábola aterradora da era do vídeo e da imagem massificada, o mesmo ano serviu para que o cineasta canadense levasse às telas uma adaptação de Stephen King, Na Hora Da Zona Morta (1983). Aqui, Christopher Walken encarna uma personagem espelhada no protagonista de Scanners, com a diferença de seus poderes paranormais serem, neste caso, revertidos para a vidência. O que é mais interessante neste que talvez seja um de seus filmes mais acessíveis, é a maneira pontual como Cronenberg consegue expor seu gosto pelo derramamento de sangue dentro de uma narrativa puramente episódica – numa violência, porém, que serve bem menos à catarse do que a ilustração, o que significa um poder bem menor de reverberação no espectador se comparado à aspereza apresentada por seus primeiros filmes.

A mesma estrutura da adaptação de King é aprimorada em seus mais recentes Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2007), que expõem a ferocidade humana tão característica de Cronenberg em dosagem mais concentrada e explosiva – aí sim, catártica como pouca coisa. A cena em que Viggo Mortensen luta completamente despido na sauna, no filme de 2008, é talvez, uma das grandes pièce de résistance do cinema cronenberguiano, um amálgama daquilo que ele sempre buscou retratar com fervor absoluto: a vulnerabilidade do homem e o confronto com o inevitável, o instintivo, sempre com a crueza tão sufocante que é peculiar a esse tipo de situação.

O monólogo do ator em Camera (2000(“Quando você recorda um momento, você recorda a morte desse momento”, ele diz)), um poderoso filme de seis minutos; o jogo infinito de eXistenZ (1999); o prazer provocado pela dor física extrema em Crash (1996); a obsessão em desvencilhar memória e delírio de Spider (2002); a angústia do homem que se torna inseto no excepcional e triste A Mosca (1986); a incrível mordacidade de Mistérios e Paixões (1991), sobre um exterminador de insetos que alucina com o próprio inseticida; o aprisionamento de pessoas sujeitas à experimentação científica em Stereo (1969) e Crimes of The Future ou mesmo o amor como jogo de representação e mágoa de M. Butterfly (1993) afirmam e reiteram o mesmo fato: simpatize-se ou não com seus filmes, a verdade da ficção raramente foi tão dura, incômoda e – acima de tudo – íntegra a uma visão artística quanto ela o é no cinema de David Cronenberg.


quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Cortes definitivos

Bob Fosse dirige o que será a cena de abertura de O Show Deve Continuar (All That Jazz, 1979). As marcações no chão do palco indicam duas linhas paralelas e um “X” representa o centro, onde os dançarinos devem se encontrar ao saltarem para lados opostos.

Este extra, no DVD do filme, revela muito sobre a essência desta autêntica obra-prima do cinema americano da década de 1970. Aqui, Fosse promove a desconstrução do mito da celebridade nos colocando no centro da ação, no meio dos passos simétricos, no cerne do espaço cênico. Ao mesmo tempo em que o coreógrafo/cineasta reflete o equilíbrio, a harmonia e a disciplina da dança no trabalho de montagem cirúrgico e nunca menos que assombroso, ele nos deixa desestabilizados ao final, desde a abertura que explode nos olhos do espectador e o deixa em êxtase.

Joseph Gideon (Roy Scheider) pinga colírio nos olhos, toma alguns comprimidos de dextrina, e logo depois já está no chuveiro – fumando. O corte, instância que se mostra sempre alma do filme, logo nos transporta para o protagonista equilibrando-se sobre uma corda a alguns metros de altura. Ele diz: “A vida é estar na corda bamba. O resto é só espera”. Se uma das características que tornam o artista sublime é sua capacidade de síntese, aí está: em menos de cinco minutos, Fosse estabelece um universo paralelo, e nos faz mergulhar nele.

As próximas duas horas mal passam, e lá estamos de novo, no corte definitivo, que nos coloca para fora de todo esse mosaico sensorial, com uma crueldade lancinante. O nome de Fosse aparece na tela e nossos olhos ainda permanecem muito abertos – mais ainda quando a música deixa de tocar e os créditos acabam de rolar num silêncio sepulcral.


sexta-feira, 31 de julho de 2009

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Horas de Desespero (William Wyler, 1955)

Horas de Desespero (The Desperate Hours, 1955), de Wiliam Wyler, é um filme notável que evidencia a incrível habilidade do diretor de Ben-Hur em concentrar o suspense praticamente num único espaço (como fizera antes com, por exemplo, Chaga de Fogo, com Kirk Douglas), e fazer dele um ambiente rico na construção de relações humanas.

Isso porque, já na cena pós créditos iniciais, temos o garoto que quer ser tratado como homem maduro (esbraveja ao ser chamado de Ralphy, no diminutivo), recusando o beijo do pai e exigindo-lhe um aperto de mão. Tudo isso durante um rotineiro café da manhã. O que é excepcional na direção de Wyler é a contraposição que ele realiza logo em seguida ao “infantilizar” a própria filha que pretende se casar. “Ela é só uma menina“, diz o patriarca Dan Hilliard, interpretado pelo Fredric March. Numa cena aparentemente tão simples, Wyler já estabelece lindamente as bases para seu drama, adaptado de uma peça de Joseph Hayes (e roteirizada pelo mesmo).

Logo o ambiente familiar é invadido por Glenn Griffin e mais dois comparsas, que acabaram de fugir da cadeia. Griffin, interpretado com o cinismo e o talento natos de Humphrey Bogart, logo toma o controle da situação e faz toda família refém. A relação que se desenha entre a tradicional família de subúrbio americana e a característica patronal de Bogart para com seus comparsas é marcante não apenas pelo fato de um deles ser seu o próprio irmão (Hal), mas porque no fundo a situação com o garoto no início se reflete – Hal busca conquistar o respeito de Glenn como forma de provar sua integridade, e não à toa ele é o primeiro a desistir do assalto.

A direção de Wyler é precisa ao abusar de planos médios e da profundidade de campo (foi o primeiro filme fotografado em preto e branco a usar o formato VistaVision, um concorrente do Cinemascope no formato widescreen) dentro da casa, sempre nos deixando a mostra, mesmo nos embates entre Bogart e March, as reações daqueles que estão à volta: a resignação de Hal, ou o medo estampado no rosto da esposa de Dan. São opções que valorizam o trabalho dos atores e deixam o espectador livre para varrer o quadro em busca de seu próprio “recorte” da tensão que permeia todo o filme.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

II Festival de Cinema de Paulínia - A atitude de se fazer cinema

O último dia da Mostra Competitiva não foi bem um fechamento com chave de ouro. O primeiro longa exibido na noite foi o documentário Herbert De Perto, dirigido por Pedro Bronz e Roberto Berliner, biografando a vida do vocalista e guitarrista dos Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna.

Berliner, amigo de Herbert desde que filmou alguns dos clipes da banda na década de 1980 e seu parceiro realizam um documentário que, se a priori gera o mínimo interesse pela música, acaba resultando enfadonho na medida em que percebemos, à parte a declarada parcialidade do projeto, o caráter “especial MTV” que ele adquire. Alguns depoimentos são de fato engraçados (como o do empresário que testemunhou Herbert respondendo à enfermeira, ainda em coma, o que ele de fato queria comer), e as imagens de arquivo complementam o todo de maneira óbvia.

Enfim, ficamos sabendo mais uma vez de praticamente tudo o que foi pisado e repisado pela mídia principalmente à época do trágico acidente com o ultraleve do músico, que acabou vitimando a esposa de Vianna, Lucy. Trechos de clipes, shows, a admiração pelo palco do Circo Voador – e o próprio Herbert, por vezes mostrado revendo trechos dessas memórias na sua TV (e rememorando-as), é o de mais interessante que o filme tem a nos oferecer. É muito homenagem para pouco cinema. Razoável, mas esquecível.

A ficção que encerrou a competição foi o primeiro longa de Ana Luiza Azevedo (que já havia trabalhado de diretora assistente para Jorge Furtado em Meu Tio Matou um Cara e O Homem Que Copiava) na direção, Antes Que O Mundo Acabe. Baseado em livro homônimo de Marcelo Carneiro Cunha, a trama se passa num município do interior do Rio Grande Do Sul (Pedra Grande), composta por um núcleo de personagens adolescentes encabeçado por Daniel (Pedro Tergolina) e seu melhor amigo Lucas (Eduardo Cardoso), que vivem as situações típicas de adolescentes na puberdade: paixões pela mesma garota, viagens que simbolizam aprendizado, bebedeiras que dão conta de dizer que a criança amadureceu.

O resultado, num primeiro momento, burla a impressão de que o filme seria mais um do gênero teen, na pior e mais irritante acepção do termo. Mas o roteiro, episódico como o tabuleiro do Jogo da Vida (de onde se nota o dedo de Jorge Furtado, que o escreveu em colaboração com a diretora e Paulo Halm) não demora a tornar seu esquematismo em tédio – o que não deixou de lembrar um dos curtas exibidos ao longo do Festival, Nesta Data Querida, de Julia Rezende, que trata de uma criança melancólica com sua festa de aniversário vazia. É o tipo de obra bonitinha, mas ordinária – com elementos que séries como Anos Incríveis tiveram bem mais êxito em explorar.

Se pensarmos na dieta recente desse estilo de filme dos afamados “ritos de passagem” que o cinema tem nos oferecido, o primeiro exemplar que logo me vêm à memória é o extraordinário O Retorno, do cineasta russo Andrei Zvyagintsev, uma fita de força rara e reverberante sobre a relação de dois garotos com o misterioso pai. O problema do longa-metragem de Azevedo é que ele não nos diz nada como imagem de cinema, nada é apreendido pelo espectador exceto o que esta ali, na superfície - a câmera, aqui, é mais um artigo meramente funcional do que uma poderosa ferramenta de produção de significados e sensações – questão, afinal, de senso estético, de real vontade de se fazer cinema, atitude que, com raras exceções, não parece ter sido o que moveu essa segunda edição do Festival Paulínia de Cinema.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

II Festival de Cinema de Paulínia - Tese e Poesia (Só Dez Por Cento É Mentira; Olhos Azuis)

Depois da excelente noite de segunda-feira, mais uma vez o festival cai na morosidade. Nada comparável ao sábado, mas se a terça-feira não ofereceu filmes tão precários, ao menos não deixou de cair na vala comum novamente.


O documentário sobre Manoel de Barros, Só Dez Por Cento É Mentira, busca retratar um pouco da vida do recluso poeta mato-grossense. Mas o que logo ofusca a curiosidade e o interesse na vida do retratado e de sua personalidade inventiva e bem-humorada é um fetichismo sem limites na construção de imagens que tentem traduzir a poesia do autor, intermediando os depoimentos com grafismos e cenas tão polidas quanto insossas, no pior estilo descanso de tela de Windows: paisagens, pedaços de ferro cuidadosamente enferrujados, crianças correndo em contraluz. Talvez o que mais chame atenção no longa dirigido por Pedro Cezar é a estrutura concedida pelo próprio poeta de biografar a sua vida através de várias “infâncias”. Os depoimentos nada acrescentam objetivamente, como o do escritor Fausto Wolff, por exemplo. Eles estão lá para exaltar, o que logicamente não deixa de ser justo, mas essa glorificação excessiva imprime a sensação de filme-homenagem, a qual não demora a empalidecer com extrema facilidade e fugir da memória (ao contrário, claro, da poesia de Manoel).


O novo filme de José Joffily, exibido logo em seguida, é aquele que mais explicitamente abraça o gênero (o do thriller policial) no Festival deste ano. Falado quase todo em inglês, Olhos Azuis gira em torno de Marshall (David Rasche, o superior de John Malkovich em Queime Depois de Ler, dos Coen), um policial que comanda o departamento de imigração do aeroporto JFK, nos Estados Unidos, se aposenta depois de um crime que ocorre em sua repartição e logo parte para o Recife para tentar se redimir. Lá ele busca, na companhia de uma prostituta (Cristina Lago), uma garota que tem relação com a vítima. Com essas duas narrativas correndo paralelamente em tempos distintos, a tentativa de emular a tensão de um William Friedkin acaba caindo por terra já na primeira meia-hora justamente porque o filme quer se fazer relevante perpassando por questões como xenofobia, racismo e culpa da maneira mais engessada possível, incluindo nos diálogos passagens como “Vocês latinos só vem aqui para tirar um pedaço do que construímos”.

Se o charme e a fluidez dos melhores policias americanos da década de 1960 e 1970, como Operação França, Bullit ou Chinatown estavam em como eles exploravam seu próprio universo (e a angústia dos personagens nele inseridos) a favor da tensão, Joffily, pelo contrário, se esquece dessa prerrogativa e passa a colocar a situação em evidência, neste caso a questão social envolvida com aqueles que podem ser expatriados, na sala de imigração, que serve apenas como decoração para uma narrativa que começa a escancarar suas engrenagens. Não é um filme que se deixa ser descoberto pelo espectador; ele quer se mostrar “grave”, “alarmante” com essa espécie de obrigação social (e moral, no que a rápida aparição do avô da garota pernambucana ilustra tão forçosamente), fazendo das atuações inicialmente tão interessantes (com destaque também para Irandhir Santos, que interpreta Nonato) meras vitrines para o cineasta expor, sem sucesso, sua tese sociológica.

terça-feira, 14 de julho de 2009

II Festival de Cinema de Paulínia - Dois Eduardos na competição (Moscou; No Meu Lugar)

A noite de ontem talvez tenha sido a melhor desta segunda edição do festival, deixando de lado a morosidade dos outros filmes apresentados e nos colocando duas propostas de cinema no mínimo instigantes.

O primeiro longa exibido foi o novo de Eduardo Coutinho, Moscou, inserido na categoria de documentários, mas que vai muito além do que uma simples rotulação de gênero. É uma obra que verdadeiramente transcende limites, demora a sedimentar. Coutinho parte para filmar os ensaios para a encenação de uma peça de Anton Tcheckov, As Três Irmãs, que por sua vez está sendo dirigida por Enrique Diaz, do grupo teatral Galpão, de Belo Horizonte. Só que o cineasta, aqui, não quer de forma alguma registrar os bastidores, filmar a peça toda, ou imprimir qualquer noção de linearidade narrativa. Partindo de cenas (ou fragmentos delas) praticamente autônomas, Coutinho mistura memórias dos atores e de seus personagens, num espaço cênico que, se claramente é limitado e limitador, paradoxalmente nos joga numa espécie de vácuo, de terra desconhecida, flutuante, sem limites.

E o título é preciso na maneira como alude, simultaneamente, a um lugar (re)conhecido pelo espectador de alguma maneira (que é também onde a peça original está situada), mesmo que numa noção rarefeita, e a outro, próprio do que cada um apreender e construir no pensamento (em que transparece aquele efeito de pensarmos ter estado num lugar que nunca estivemos, ou dito ou vivido algo que nunca vivemos, ao menos no plano do “real”, do “factual”, “verdadeiro” – e as aspas aqui ajudam a entender o quanto são três instâncias que podem ser completamente congruentes).

Assistir a Moscou é uma experiência dura, intensa e por isso tão recompensadora: exaltando a todo o momento a também árdua tarefa de ser ator, de interiorizar sentimentos, de colocá-los para fora quando necessário, de se apropriar de reminiscências que não as suas, Coutinho ao mesmo tempo enobrece sobremaneira o interlocutor. Quem assiste a esse a seu novo filme, se não é atingido em cheio em algum momento, ao menos terá a sensação de que raramente experimentará algo tão único numa tela de cinema.

No Meu Lugar é um filme caloroso e que nos passa a nítida sensação de familiaridade, de que a gama de personagens do filme poderia morar ali ao lado. Intercalando habilmente a história de três núcleos narrativos, a estréia de Valente na direção de longas-metragens nunca esbarra no exibicionismo técnico ou narrativo, apesar da estrutura multiplot já ter gerado tantas deformidades (Babel, Crash – No Limite) quanto preciosidades (Short Cuts, Magnólia). O ponto de partida do filme é um assalto a uma casa num bairro de classe-média do Rio de Janeiro, onde um policial, interpretado com evidente entrega por Márcio Vito, acaba cometendo um crime e é afastado da polícia.

A partir daí, o espectador poderia esperar uma linha narrativa que investisse muito mais no psicologismo e nas tentativas de explicação para o ocorrido através de uma conjugação de acontecimentos do “acaso”, e tantos outros moralismos que acabariam por dar um verniz didático ao filme ao mesmo tempo em que ele desapareceria da memória rapidamente. Felizmente, não é o que ocorre neste caso, muito pelo contrário. Valente deixa seus personagens extrapolarem a estrutura narrativa, e a partir disso é que surgem cenas memoráveis como a conversa do entregador de supermercado Roberto (Raphael Sil) com o tio, ou as interações entre os dois filhos do casal formado pela atriz Dedina Bernardelli e pelo ator Licurgo Spinola. Passadas em três tempos diferentes, as estórias nunca estão uma em função da outra, apesar de haver uma ligação entre elas. E é exatamente por isso que a intensidade emocional permeia toda a narrativa, de maneira muito equilibrada, não apenas convergindo num único ponto do roteiro. Belo filme.

PS: Não sou de tietagem, mas quando Eduardo Coutinho, que tinha acabado de entrar para a segunda sessão, sentou, serenamente, a meu lado, não pude resistir à idéia de puxar uma pequena conversa sobre os dois longas da noite, ao final do filme. Ele ressaltou, rapidamente, o quanto eram filmes difíceis, e respondi que eram exatamente esses que instigam e amadurecem muito melhor com o tempo. Um grande prazer também conhecer Eduardo Valente pessoalmente, antes apenas presente, para mim, virtualmente nos avatares de Orkut e nas críticas da revista Cinética. Parabéns aos dois pelos filmes.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

II Festival de Cinema de Paulínia - os longas de ficção, até agora

Lado a lado com as propostas conservadoras que se viram nos documentários, os longas exibidos dentro da categoria de ficção não fugiam do que parece estar sendo a regra do festival: a amenidade, o não confrontamento, a estratégia defensiva. O primeiro dos filmes exibidos ao púbico foi O Contador de Histórias, de Luiz Villaça, marido de Denise Fraga e parceiro de trabalho em Retrato Falado, quadro exibido há alguns anos dentro do Fantástico.

O filme é baseado na história real de Roberto Carlos Ramos que, na Belo Horizonte da década de 1970, é adotado por uma pedagoga francesa, e se revela um garoto com notável habilidade para fantasiar seu cotidiano. De início, a obra nos promete levar a caminhos no mínimo estimulantes, principalmente nas seqüências que se passam na casa da personagem vivida por Maria de Medeiros (a namorada de Bruce Willis em Pulp Fiction), onde o compromisso de narrar os fatos da maneira mais tradicional é posta de lado em detrimento de uma interação bem mais rica entre os dois atores. A partir daí, porém, a necessidade de planificar os personagens e deixar tudo mais “palatável”, por assim dizer, acaba por arruinar o filme, na medida em que Villaça propõe um jogo bobo de gato e rato com outro colega de rua que era admirado por Roberto, o qual passa a ser o “vilão” numa narrativa que, a princípio, prescinde de qualquer tipo de sentimento de heroísmo para ser absorvida pelos espectadores.

O segundo fime, exibido no sábado, logo depois de Mamonas, o Doc, é talvez uma das coisas mais indecifráveis que se possa imaginar: Destino, de Moacyr Góes. É daqueles acontecimentos antológicos que superam qualquer limite de bom senso, cara-de-pau, tosqueira.
O constrangimento talvez não tenha sido maior porque não é permitido entrar com tomates dentro do teatro, se não aquilo ficaria mais sujo que o proverbial pau de galinheiro. E a culpa não se restringe aos “realizadores” desta aberração (além de Góes, a produtora e atriz Lucélia Santos, Diler Trindade e sua quadrilha), mas a curadoria (a.k.a Rubens Ewald Filho) que, se o mundo estivesse minimamente nos eixos, seria imediatamente substituída.

No domingo, o cinema começou enfim a retomar a dignidade e ser o assunto principal da noite. Logo após o longa de Mocarzel, Roberto Moreira exibiu sua nova película, Quanto Dura o Amor? (conhecido inicialmente como Condomínio Jaqueline), um filme que nos dá o alívio de presenciar personagens bem escritos que, se não chegam a criar um comprometimento emocional mais forte na relação do espectador com a obra (o filme não é de forma alguma apressado, mas sua hora e meia parece muito pouco), ao menos é caloroso e bem atuado o suficiente (destaque para a estreante em cinema Maria Clara Spinelli, incrivelmente sutil) para manter o interesse até o final. Moreira entrelaça de maneira muito fluida e delicada várias estórias de amor que têm como pano de fundo a cidade de São Paulo, desde uma atriz iniciante que chega à metrópole para tentar crescer na profissão (Silvia Lourenço, excelente) à uma advogada (Spinelli) que convive com um dilema na sua relação com um colega de trabalho. Destaque para a bela fotografia digital (a primeira produção brasileira a usar a aclamada câmera Red One, de resolução 4K, superior ao HD) de Marcelo Trotta (Signo da Cidade, a série Alice, da HBO e a recente Som e Fúria).

Hoje promete ser a melhor noite, com o aclamado novo filme de Eduardo Coutinho (Edifício Master), Moscou, e No Meu Lugar, a estréia em longas-metragens de Eduardo Valente, crítico da revista eletrônica de cinema Cinética e curta-metragista premiado.

II Festival de Cinema de Paulínia - os documentários, até agora

Mais do que um olhar apurado sobre o conceito de um festival, e de critérios que sejam minimamente coerentes com essa visão, o que talvez falte à curadoria do II Festival de Cinema de Paulínia é um olhar de cinema. Isso fica evidente em três dias de exibições abertas ao público, nos quais foram privilegiados filmes que parecem se fechar dentro de seu próprio universo. Não que isso não seja esperado em longas-metragens cujos títulos já escancaram esse tipo de narrativa, no caso de Caro Francis e Mamonas, o Doc, mas o que se viu até aqui, com algumas exceções, são filmes que retratam esse tipo de mundo particular com um conservadorismo impressionante.

O caso de Caro Francis, mais do que tratar do jornalista Paulo Francis, o documentário de Nelson Hoineff acaba caindo na armadilha de colocar em cena o personagem Paulo Francis, na maior parte do tempo. Claro que a essência de Francis como jornalista, e o que o fazia tão distinto era exatamente seu estilo desbocado e sarcástico, sua face cartunesca. Desde a apresentação do filme para o púbico presente, o diretor já deixa claro que aquilo é um retrato pessoal de um amigo de vinte anos, porém o que se vê na tela é surpreendentemente infantil tanto como construção imagética (o plano em que um cachorro é visto deitado no canto de um sofá enquanto um dos entrevistados discorre sobre o jornalista é o exemplo maior disso) quanto proposta de cinema.

Mamonas, o Doc, de Cláudio Khans, é bem mais feliz no cuidado com que costura as imagens “caseiras” feita pelos próprios músicos com as entrevistas com o núcleo familiar e profissional dos artistas. Aqui, a proposta também está no retrato intimista e carinhoso de cinco pessoas que pareciam não fazer qualquer tipo de dissociação dos personagens que interpretavam no palco dos indivíduos brincalhões e engraçados do cotidiano. As imagens feitas em VHS são peças-chave para dar ao espectador essa impressão, tanto no descompromisso com qualquer tipo de ordenação interna de cenas quanto na autenticidade das situações. Resulta num filme muito melhor resolvido que o de Hoineff, estabelecendo uma relação de cumplicidade tanto com o espectador-fã (no meu caso), quanto com aquele que apenas presenciou a ascensão e queda supersônica de um grupo musical que virou fenômeno de vendas com menos de seis meses de estrada.

O melhor dos documentários até essa primeira metade do evento, porém, veio com Evaldo Mocarzel e seu Sentidos à Flor da Pele. Buscando retratar as dificuldades de seis pessoas que convivem com a cegueira, o filme foge de qualquer tipo de vitimização e demagogia e parte para ilustrar a experiência sensorial desses indivíduos, usando como principal ferramenta o excelente desenho de som do filme. Com isso, nos revela dois momentos especialmente fortes como cinema (que, em primeira instância, nada mais é do que a experiência da conjugação de sentidos): o primeiro deles é quando o pai do montador do filme, Marcelo Moraes, tem projetadas às suas costas fotos antigas suas, e ele as comenta de acordo com o que lembra da situação, dos gestos que fez, do que procurava expressar. Outro deles é quando um advogado, cuja visão foi se esvaecendo gradualmente, filma o deslocamento de sua esposa pela sala, apenas pelo sons que dela emanam. Mocarzel, assim, não tem a pretensão de se colocar no lugar dos cegos, muito menos impor um olhar “de fora”, didático, mesmo que a força sensorial de sua obra se dilua ao longo da sessão.