domingo, 17 de janeiro de 2010

Cinema de bravura


Analisar o cinema de Werner Herzog não é tarefa das mais fáceis. É um cineasta que sempre parece instaurar certo desequilíbrio dentro de suas narrativas, seja na mistura de registros que fazem seus filmes tomarem sempre um rumo que nunca esperamos, seja ao usar e subverter códigos pré-estabelecidos de uma cultura cinematográfica como a norte-americana.

Em Vício Frenético (The Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans, 2009), seu longa-metragem mais recente, cujas semelhanças com a obra homônima de Abel Ferrara se resumem apenas às linhas gerais do enredo, Herzog joga com os códigos do drama policial. E esse jogo vai muito além da ordem estético-narrativa: o diretor alemão imprime sua cadência, seu ritmo de maneira tão forte e particular que, se inicialmente tudo aparenta estar num constante desequilíbrio, como relatei, logo percebemos que é justamente essa habilidade, de controlar o incontrolável, de dar vazão aos impulsos sem deixar o filme sair dos trilhos, o aspecto fundamental que faz do cineasta responsável por Fitzcarraldo um gênio.


Nicolas Cage, no que talvez seja seu melhor desempenho em muito tempo, mergulha sem pudor nesse peculiar tour de force: seu Terence McDonagh acaba de ser promovido a tenente, e logo nesses primeiros minutos, há um momento emblemático: da rigidez do enquadramento que mostra o discurso do policial que irá condecorá-lo, Herzog corta para um plano de câmera na mão que, cambaleante, urgente até, vai “buscar” o rosto de McDonagh quase escondido entre os colegas de farda, demonstrando o sentimento de “despertencimento” daquela personagem de seu universo – contrariando sua aparente desenvoltura na cena que abre o filme.


Dessa miscelânea de tons aparentemente insolúveis, do humor alienígena e desconcertante a certa melancolia e lirismo que parece engolfar todo o filme, afinal – especificamente no retrato do que senti ser uma personagem profundamente triste (interpretada por Jennifer Coolidge), mais até do que Frankie (Eva Mendes) - Werner Herzog extrai com maestria um filme muito satisfatório para quem aprecia cinema de gênero, mantendo as linhas mestras do roteiro sempre muito estáveis, com subtramas interessantes e bem resolvidas, mas em paralelo promove uma outra viagem que constantemente confunde e coincide com a trama “concreta”. E é isso que torna Vício Frenético fascinante.


Dentro do filme de gênero, vale lembrar, Herzog alcança seu momento iconoclasta: encena um tiroteio absolutamente espetacular ao som da gaita nervosa de Sonny Terry (a mesma música do final de Stroszek, também dirigido pelo alemão, em 1977) e faz Cage soltar uma frase quase mítica, tão representativa de seu estado de espírito àquela altura. Tarantino ficaria com inveja.


Terence é histriônico, vulgar, brutal, carinhoso. Esse transtorno mental provocado pelo vício em analgésicos e cocaína é absorvido com muita convicção por Herzog, e o uso de animais, a cobra no início, os peixes no fim ou, principalmente, os iguanas, evidenciam esse sentimento com muita propriedade. O tenente está num eterno transe, e o modo como o diretor sabota o desfecho ‘feliz’ através do rumo que várias situações tomam, nos deixando num estado de confusão ainda maior, é brilhante. Nenhuma surpresa, aliás, vindo de um autêntico visionário, um cineasta que não se furta em mergulhar no paradoxo, no insólito e na loucura e nos deixar também completamente imersos.


O ano mal começa e já temos um belo exemplar no panteão dos melhores, sem uma gota de dúvida.

2 comentários:

  1. Era para eu ter visto hoje, mas deu bode. O Cage encarnando o James Cagney. hahaha. Deve ser uma coisa linda!

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  2. Agora até fiquei com vontade de assistir o filme. Admito que minha paciência com Cage anda tão baixa que eu deixe o filme passar. Mas agora vc me deu boas razões para tentar pegar o filme em algum cinema.

    Abraços,
    André C.

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