quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Polanski "State-of-Art"


Deneuve em Repulsa ao Sexo: olhar fulminante

E mais Polanski. Vi outras duas de suas pérolas, grandes obras ainda em início de carreira (e que início!). Repulsa ao Sexo (1965) é simplesmente fabuloso, Catherine Deneuve loura e deusa, uma performance magnética como nunca havia visto antes. Polanski continua com seu jazz nervoso (e aqui ele dá ainda mais ênfase às fortes batidas de bateria), que ilustra com perfeição o estado de espírito quieto e perturbado de Carol Ledoux, que trabalha de manicure num salão de beleza e vive com a irmã. A abertura, o domínio que Polanski têm dos espaços (tanto cênico quanto narrativo - a presença do coelho quase que em estado de putrefação durante praticamente todo o filme, as rachaduras nas paredes, a cena em que as mãos saem da parede em busca do corpo de Carol - são exemplos perfeitos), a impecável construção de peronagens através do roteiro precioso escrito pelo próprio diretor em parceria com Gérard Brach, tudo é absoluta e genialmente controlado. A atuação de Deneuve é de poucas palavras, mas muito de seu poder vem de seu olhar calmo, mas fulminante (os closes nos olhos dessa mulher é de deixar qualquer um paralisado). As partes envolvendo sangue são especialmente assustadoras, em particular sua fúria com uma navalha. O final, então, é de magnitude indescritível - o passeio da câmera, do rosto lânguido de Deneuve até chegar ao zoom final revelador, é monumental, coisa que se passa 20, 30, 50 anos sem que ninguém consiga chegar a tal nível de proeza. Um dos grandes filmes de todo o Cinema, indubitavelmente.

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Dorléac e Pleasance: tragicomédia, Coen, Monty Python e melancolia

Outra jóia rara e surpresa maravilhosa que tive foi Armadilha do Destino (1966), um filme que os irmãos Coen devem ter visto e revisto centenas de vezes. É o tipo de filme difícil de se classificar, e essa mistura de comédia e tragédia é dosada com habilidade impressionante por Polanski, que aqui abusa de suntuosos planos-gerais da ilha inglesa que lhe serve de cenário, numa fotografia claramente mais operística e majestosa do que seus longas anteriores (de autoria de Gilbert Taylor, também de Repulsa). Nesse seu terceiro filme, o segundo de sua parceria com o roteirista Gérard Brach, o cineasta polonês revela sua verve mais sarcástica, narrando a história de dois bandidos (Lionel Stander e Jack MacGowran) que, ao falharem num assalto, e impedidos pela maré alta de seguirem viagem, acabam por se hospedarem num castelo, cujos donos, vividos por Donald Pleasance e Françoise Dorléac (irmã de Catherine Deneuve, morta tragicamente aos 25 anos, num acidente de carro) E, caramba, Pleasance é outro gênio, no mesmo patamar de um Peter Sellers, e encarna esse personagem com devoção insuperável, equilibrando entre o excêntrico e o ridículo de maneira primorosa, e que nas mãos de outro diretor certamente poderia ter se tornado uma caricatura tosca e superficial (talvez até preconceituosa para alguns puristas ingleses). A construção de seu personagem têm algo de Monty Python com um toque de melancolia, se é que uma comparação assim ajuda a entendê-lo. Tira sarro de si mesmo (ou melhor, deixa-se tirar sarro), mas é um eterno sofredor, fraco, covarde, traído e chacoteado pela mulher incessantemente (a cena em que ele se veste de bebê e acaba por surpreender o bandido é antológica), e que acabamos ficando com pena. Polanski aqui também dá mais uma demonstração de seu extremo talento nos oferecendo um plano-seqüência de mais de 7 minutos que, de tão fluído e sutil, quase nem percebemos sua engenhosidade. Perfeito exemplo do uso da técnica em favor da narrativa, e não apenas um malabarismo gratuito de direção, apenas para chamar a atenção. Repito: Armadilha certamente deve ter sido um dos fortes alicerces do qual os irmãos Coen delinearam seu estilo peculiar de escrever e filmar. É impossível ver o personagem de MacGowran, Albie, impassível dentro do carro quase inundado, no início, e não pensar que os irmãos cineastas poderiam ter criado aquilo. Os tiros, a violência, o carro queimado, o galinheiro destruído, a cena final - tudo lembra muito obras como Fargo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, O Grande Lebowski, no seu humor-negro e no mergulho num universo particular ricamente caracterizado e detalhado, no qual os diretores pisam fundo no acelerador, sem medo de serem felizes ou retratados como doidos varridos. Levam as situações ao limite, desenvolvem esse mundo paralelo apaixonadamente: e é exatamente isso que os fazem fascinantes, originais e geniais. Bravíssimo!

P.S.: Armadilha conta ainda com uma ponta (silenciosa) da então estreante Jacqueline Bisset, creditada como Jackie Bisset.

P.S.2: O novo dos Coen, No Country For Old Men, Onde Os Fracos Não Têm Vez por aqui, é o filme que mais espero para ver, disparado. O livro é sensacional, o filme não deve ser diferente. Estréia em 08/02/2008.

sábado, 24 de novembro de 2007

A Faca na Água (1962)

O trio de protagonistas de A Faca na Água: a poderosa estréia de Polanski


Roman Polanski iniciou sua brilhante carreira com tudo. Este seu primeiro filme, A Faca na Água (Nóz w wodzie, Polônia, 1962), é um primor técnico e narrativo. Econômico, Polanski precisou apenas de um barco e três atores para construir um ambiente de confronto e tensão permanentes. O enredo é simples: Andrzej (Leon Niemczyk), um colunista de esportes, e sua bela mulher, Krystyna (Jolanta Umecka), estão dirigindo quando se deparam com um jovem (Zygmunt Malanowicz) pedindo carona, no meio da rua. Dentro do carro, os três partem para um passeio dentro do iate do casal. A partir daí, o marido, sentindo a troca de olhares supeita entre o jovem e sua mulher, passa a se comportar como o "capitão" da embarcação, condenando e ironizando todas as ações do jovem (que traz consigo uma faca) e tentando mostrar sua superioridade. São notáveis as maravilhosas composições que Polanski cria a partir de enredo tão enxuto e cenário tão limitado. A fotografia, em belíssimo preto-e-branco, ressalta os reflexos sobre a água e vegetação, e a atmosfera sufocante que surge daí é digna de mestre. O jovem "caminhando" sobre a água, a catarse de toda aquela tensão física e emocional que, surpreendentemente, não vem através da violência, e sim do beijo entre o jovem e a moça, os diálogos que acentuam gradualmente o conflito, os ensejos de um jazz eletrizante que permeiam a narrativa, em sua grande parte dominada pelo silêncio, as cenas dentro da embarcação (o jogo de palitos, o olhar do jovem à Krystina se despindo, em segundo plano, os dois homens atirando a faca) - tudo isso já anunciava outro grande cineasta que estava por conquistar o mundo com sua ousadia na experimentação da linguagem e sofisticação na condução narrativa. Belíssima estréia.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Desencanto (1945)

É refrescante ver um filme sincero e charmoso como esse. O diretor britânico David Lean já estava despontando como diretor (antes, como editor, havia tido sucesso expressivo) e partiu para a adaptação dessa peça de Noel Coward, chamada originalmente Still Life, 17 anos antes de construir seu monumental épico Lawrence da Arábia. É uma história de amor enxuta, mas não menos tocante entre duas pessoas que se encontram secretamente durante algumas semanas. Trevor Howard, numa atuação contida, interpreta o médico Alec Harvey, que encontra no bar de uma estação uma mulher (Laura Jesson, interpretada por Celia Jonhson) que está desesperada para reitrar um cisco de areia que acaba de entrar em seu olho, enquanto observava a rápida passagem de um trem pela plataforma. É o pretexto para que ambos se apaixonem de imediato e comecem a marcar seus breves encontros (o título original é Brief Encounter). O filme é todo contado em flashbacks, a narrativa tem desenvoltura, mas o que prevalece aqui não é nenhum arroubo de direção, mas sim os pensamentos singelos expressos na narração de Laura, doce e melancólica. É de cortar o coração o momento em que Laura, no trem, em frente à sua amiga tagarela, lamenta não ter podido viver os últimos momentos com seu amante, ou quando imagina-se viajando com Alec, seus pensamentos refletidos na janela do vagão. A personagem de Johnson chega até a confessar ao seu marido que "odeia pessoas bem-intencionadas", referindo-se a amiga verborrágica. Enfim, Pontes de Madison, de Clint Eastwood, que havia visto há algumas semanas, deve muito a atmosfera deste aqui, no tom desiludido, "desencantado", com o qual trata esse momento de fuga de pessoas que, com a relação conjugal estabelecida, família, filhos, se aventuram num amor passageiro intenso apenas para depois constatarem o erro de fugir de um ambiente que, por mais insosso e artificial que possa parecer, oferece segurança e estabilidade. É uma fábula de desilusão, mas extremamente terna, e a fala do marido de Laura, ao final, só vem confirmar isso tudo. Belo filme.



Johnson e Howard: fábula de desilusão

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Pickpocket - O Batedor de Carteiras (1959)

LaSalle e Green: o homem salvo pelo amor

Ainda não conhecia o diretor francês Robert Bresson, mas fiquei impressionado com esse seu Pickpocket, que vi hoje, principalmente pelo seu rigor absoluto, tanto na estética quanto nas atuações. Seco e objetivo (o filme dura precisos 75 minutos), ele narra a história de Michel (Martin LaSalle), um rapaz que decide fazer da atividade de batedor de carteiras sua profissão. A tela transpira disciplina, na construção mecânica da narrativa de Bresson: rouba, é preso, é solto, se apaixona, é perseguido, rouba novamente, é preso. Não que essa descrição pretenda simplificar a obra, de maneira alguma. Aliás, desse estilo cirúrgico e contemplativo de Bresson surge uma das cenas mais bem montadas de todo o cinema, a que Michel, juntamente com seus comparsas, fazem uma verdadeira "limpa" nas carteiras dos passageiros de um trem. Tudo é coreografado com uma perfeição impressionante, alternando os movimentos sutis dos ladrões com os planos-detalhe nos bolsos das calças e dos paletós. Tudo fluído, suave como uma valsa. Paradoxalmente, essa dança toda é construída com pouquíssimos movimentos de câmera, assim como o filme no geral, que também é permeado pela narração do protagonista, esporádica e com zero de entonação. É interessante também que o filme abre com um texto, explicando que o filme não é um thriller, apenas a história de um homem que seguiu um caminho atravancado que, apesar de tudo, era a única maneira de uni-lo a sua parceira (Jeanne, interpretada por Marika Green), fato que é confirmado na frase final: "Oh, Jeanne, para finalmente estar junto a você, que caminho estranho tive que tomar". É o único momento no qual o filme revela uma aproximação mais carinhosa entre os personagens, e que Bresson dá margem a uma expressão de sentimento mais genuína, acalorada (a bela troca de beijos nas grades da prisão), à parte dos rostos apáticos e do desenrolar frio de antes. É a história de um homem salvo pelo amor, e a sacada do cineasta francês de desenvolver todo esse percurso gélido para justamente fazê-lo desembocar nesta maravilhosa cena final, é o toque de mestre de uma obra especial. Maravilha.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O Silêncio do Lago (Spoorloos, 1988)

Johanna ter Steege e Gene Bervoets: thriller franco-holandês genial

Vi ontem essa pérola, dirigido pelo franco-holandês George Sluizer, uma obra simplesmente hipnótica. Construção de suspense magistral, é um filme de silêncios sufocantes. Baseado num romance de Tim Krabbé chamado "O Ovo Dourado" (as metáforas visuais que provêm desse título são habilmente usadas ao longo da narrativa), é a busca de Rex Hofman (interpretado por Gene Bervoets) pela sua namorada, Saskia (Johanna ter Steege), que desaparece estranhamente quando vai comprar um refrigerante numa loja de conveniência de um posto de gasolina. Sluizer, aqui, sutilmente vai estabelecendo a estrutura narrativa do filme, por vezes indo e voltando no tempo sem que nada se torne confuso ou entediante. Seus enquadramentos e angulações conseguem ressaltar à perfeição o clima mórbido da história, com plongées fascinantes e movimentação de câmera a la Hitchcock, uma influência evidente do diretor, além dos diálogos ricos e precisos. O filme flerta com o road-movie, em seu iníco em que o casal viaja para passar o feriado na França. Mas já aos 20 min., o filme já subverte esse conceito de maneira primorosa, deixando o espectador inquieto. O personagem de Bernard-Pierre Donnadieu, um professor de química perturbado chamado Raymond Lemorne, é desenvolvido com perfeição na sua calma e serenidade angustiantes. O desfecho é igualmente impressionante mas, talvez, para quem tenha visto Kill Bill, de Quentin Tarantino, esse impacto seja um tanto reduzido. Mas é preciso levar em conta que o magnífico filme de Sluizer é de 1988, bem antes de Tarantino iniciar sua carreira e, consequentemente, sua interminável odisséia de referências (homenagens, colagens) cinematográficas, cujo Spoorloos é uma das principais dentro de sua saga de vingança sangrenta. Há uma refilmagem (que não vi), The Vanishing, de 1993, que o próprio Sluizer dirigiu com Sandra Bullock, Kiefer Sutherland e Jeff Bridges, massacrada pela crítica. Porém, esqueça o remake e Kill Bill por um momento, e deixe-se levar por esse thriller memorável. O lançamento em DVD é da Silver Screen.

domingo, 18 de novembro de 2007

Jovem Scorsese completa 65: um diretor que pulsa

Pelo título do blog, alguns poderiam pensar que fosse um reduto exclusivo kubrickiano. Mas não, o que está em voga aqui é o Cinema. O Kubrick do título, e a genialidade desse nova-iorquino, nos inspiram a falar de outros grandes da Sétima Arte. E hoje, nada mais justo que uma homenagem a um, acima de tudo, grande apaixonado pela linguagem cinematográfica. Martin Scorsese, outra ilustre figura de Nova York, completa hoje meros 65 anos de idade, pouquíssimo a quem ainda tem muito a produzir. Scorsese, com sua fala rápida, nos cativa ao expressar sua profunda admiração pela essência da sétima arte e, sem nenhum academicismo, nos dá aulas magnas de direção, como se estivesse numa ampla roda de amigos, compartilhando e trocando idéias. Chegou até a fazer uma síntese de sua vida: "My whole life has been movies and religion. That's it. Nothing else.". Scorsese é de uma geração que produziu muitos talentos (Coppola, DePalma, Spielberg), mas sempre teve uma saudável inclinação para a amargura, que refletia em filmes que transpiravam autenticidade e crueza, à parte do apelo comercial tipicamente hollywoodiano. O neo-realismo italiano que inspira Touro Indomável, por exemplo, é arrepiante. O filme pulsa, o Jake La Motta de DeNiro é dos personagens mais explosivos que o Cinema já construiu. É uma obra ancorada profundamente nos seus personagens, de desdobramentos secos e cenas de luta insuperáveis, filmadas e sonorizadas com maestria, num p&b primoroso de Michael Ballhaus. Scorsese é, também, o cineasta "contrabandista", termo que ele próprio definiu para diretores que, mesmo puxados pelas rédeas curtas e imperdoáveis dos estúdios, conseguiam impor sua marca autoral. Enfim, uma pequena homenagem a esse outro grande mestre, que tem muito a produzir e muitas aulas a nos dar, nesses seus 65 anos de pura vitalidade.


A melancolia de LaMotta (DeNiro): um filme que pulsa


sábado, 17 de novembro de 2007

Kubrick na estréia de 2001

São raros os momentos em que Kubrick concedia entrevistas à imprensa. Este aqui que segue foi feito na estréia de 2001 em Nova York. Imaginem o que era ver 2001 na tela gigante de um cinema, na premiére, em NY. Pouca coisa, não?

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Kubrick "State-of-Art"

Falar de Kubrick é falar do ápice do Cinema em muitos aspectos. Parece chover no molhado dizer que só fez obras-primas definitivas, doze filmes magníicos numa gloriosa carreira de quase 50 anos. Suas obras tinham tempo certo de maturação, de desenvolvimento. O cineasta nova-iorquino tinha uma característica primordial que era fazer de seus filmes verdadeiros ícones culturais atemporais. 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), visto à época, hoje ou daqui a 100 anos não será peça de museu, um culto saudosista, ou mesmo um filme ultrapassado. Kubrick sabia como ninguém construir em seus filmes a essência da reflexão humanista e científica e conjugá-las com o fazer cinematográfico, sem melodramas ou excessos. E se a essência de uma obra de arte se mantém intacta, aí está sua imortalidade. É conhecido por ser cerebral, mas a emoção dentro de suas obras, que não significa o choro meloso ou a gargalhada besta e rasgada, brota exatamente daí: o pensamento racional, apesar de exato e rigorosamente estruturado, tem um limite, uma barreira por vezes invisível, mas que está lá, e a emoção quebra essa divisa, ela é infinita e não absoluta. E Kubrick faz exatamente isso: transborda esse limite. Sua narrativa "explode" no segundo ato de Nascido Para Matar; Alex busca redenção em Laranja Mecânica, e o choro de sua mãe parece demarcar a ultrapassagem desse limite estrutural-racional para um estado emocional quase que opressivo, que não nos faz chorar junto, mas nos obriga a pensar e refletir sobre a transformação desse personagem. Dr. Strangelove nos faz rir, sim, mas num estado de perplexidade com a situação de uma guerra nuclear poder ser deflagrada por pura imbecilidade política. Ao final de 2001, chegamos num estado de torpor, indecifrável, onde não podemos explicar aquilo que vimos, mas ao absorver aquelas imagens hipnóticas, com a música transcendental de Strauss ao fundo, sentimos um pouco da maravilha que é a existência humana. É isso, Kubrick não nega as emoções, ele as estimula através da reflexão e do pensamento.