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Dorléac e Pleasance: tragicomédia, Coen, Monty Python e melancolia
Outra jóia rara e surpresa maravilhosa que tive foi Armadilha do Destino (1966), um filme que os irmãos Coen devem ter visto e revisto centenas de vezes. É o tipo de filme difícil de se classificar, e essa mistura de comédia e tragédia é dosada com habilidade impressionante por Polanski, que aqui abusa de suntuosos planos-gerais da ilha inglesa que lhe serve de cenário, numa fotografia claramente mais operística e majestosa do que seus longas anteriores (de autoria de Gilbert Taylor, também de Repulsa). Nesse seu terceiro filme, o segundo de sua parceria com o roteirista Gérard Brach, o cineasta polonês revela sua verve mais sarcástica, narrando a história de dois bandidos (Lionel Stander e Jack MacGowran) que, ao falharem num assalto, e impedidos pela maré alta de seguirem viagem, acabam por se hospedarem num castelo, cujos donos, vividos por Donald Pleasance e Françoise Dorléac (irmã de Catherine Deneuve, morta tragicamente aos 25 anos, num acidente de carro) E, caramba, Pleasance é outro gênio, no mesmo patamar de um Peter Sellers, e encarna esse personagem com devoção insuperável, equilibrando entre o excêntrico e o ridículo de maneira primorosa, e que nas mãos de outro diretor certamente poderia ter se tornado uma caricatura tosca e superficial (talvez até preconceituosa para alguns puristas ingleses). A construção de seu personagem têm algo de Monty Python com um toque de melancolia, se é que uma comparação assim ajuda a entendê-lo. Tira sarro de si mesmo (ou melhor, deixa-se tirar sarro), mas é um eterno sofredor, fraco, covarde, traído e chacoteado pela mulher incessantemente (a cena em que ele se veste de bebê e acaba por surpreender o bandido é antológica), e que acabamos ficando com pena. Polanski aqui também dá mais uma demonstração de seu extremo talento nos oferecendo um plano-seqüência de mais de 7 minutos que, de tão fluído e sutil, quase nem percebemos sua engenhosidade. Perfeito exemplo do uso da técnica em favor da narrativa, e não apenas um malabarismo gratuito de direção, apenas para chamar a atenção. Repito: Armadilha certamente deve ter sido um dos fortes alicerces do qual os irmãos Coen delinearam seu estilo peculiar de escrever e filmar. É impossível ver o personagem de MacGowran, Albie, impassível dentro do carro quase inundado, no início, e não pensar que os irmãos cineastas poderiam ter criado aquilo. Os tiros, a violência, o carro queimado, o galinheiro destruído, a cena final - tudo lembra muito obras como Fargo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, O Grande Lebowski, no seu humor-negro e no mergulho num universo particular ricamente caracterizado e detalhado, no qual os diretores pisam fundo no acelerador, sem medo de serem felizes ou retratados como doidos varridos. Levam as situações ao limite, desenvolvem esse mundo paralelo apaixonadamente: e é exatamente isso que os fazem fascinantes, originais e geniais. Bravíssimo!
P.S.: Armadilha conta ainda com uma ponta (silenciosa) da então estreante Jacqueline Bisset, creditada como Jackie Bisset.
P.S.2: O novo dos Coen, No Country For Old Men, Onde Os Fracos Não Têm Vez por aqui, é o filme que mais espero para ver, disparado. O livro é sensacional, o filme não deve ser diferente. Estréia em 08/02/2008.