terça-feira, 13 de outubro de 2009

Cinema pleno (Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino)

Arma poderosa, esse tal de Cinema

Talvez seja algo de anacrônico comparar a ida ao cinema para um novo filme de Quentin Tarantino com a volta numa gigantesca montanha-russa, ou um vôo rasante, perigoso e inesquecível por entre as cataratas do Iguaçu, com algum monoplano antigo, mas poderoso. A espera, o momento anterior à experiência já vem carregado de uma ansiedade contagiante.

Assim, desde o momento em que o filme se abre com a logomarca antiga dos estúdios Universal, usada na década de 1980, sabemos que algo especial está por vir. Em agosto, Sam Raimi já a utilizou em Arraste-me Para O Inferno, e o que se seguiu foi uma agradável surpresa em formato matinê, um terror cômico cuja âncora era a habilidade do diretor em remexer os clichês do gênero sempre com um sorriso de canto de boca para cinéfilos.

I bid your 'adieu'!

Se Raimi reprocessa com tanto prazer sua cinefilia, impossível delimitar o nível de amor que Quentin Tarantino coloca em seu Bastardos Inglórios. Não é o simples deleite pela imagem: o que o diretor de Jackie Brown faz aqui é elevar a experiência cinematográfica ao patamar da celebração. Não à toa, o jogo é elemento essencial da narrativa desde a cena de abertura, quando o herr colonel poliglota Hans Landa da SS nazista, interpretado por Christoph Waltz (gênio, que só faltou fazer miséria com iídiche), invade sutilmente a casa de um fazendeiro na França ocupada, em 1941, em busca de judeus escondidos. O embate verbal que ali se instaura é montado com rigor jamais visto na obra de Tarantino, de modo que o espectador se vê imerso nesse duelo como mais um de seus participantes.

O filme dentro do Filme, "Stolz der Nation"

Claro que jogar com o público não é novidade na obra de um autor que detém talento incrível para a musicalidade das palavras e da encenação. Mas aqui Tarantino está mais afinado que nunca na sua jornada para construir e enriquecer dramaticamente um universo muito próprio, principalmente no senso de humor sofisticado que demonstra. Quando o coronel de Waltz reafirma sua superioridade ao tirar do bolso um cachimbo insanamente maior, mais extravagante e colorido que o de seu oponente (aliás, Denis Menochet, o ator que faz o fazendeiro francês Perrier LaPadite, é outro gigante), a gag de Tarantino acaba por ser tão engraçada quanto cruel, já que se impõe ao personagem nazista como um último desafio/jogo moral, fulminantemente vencido, expondo a fragilidade de seu interlocutor de maneira desoladora - e há alguém melhor para musicar a desolação senão Ennio Morricone? Será que sobra alguma alma pra chamar Tarantino de superficial?

Ainda nessa introdução, ficamos sabendo que da família refugiada sob o assoalho de LaPadite apenas uma garota conseguiu fugir: Shosanna Dreyfus. Três anos depois, a personagem interpretada por Mélanie Laurent (magnética em todos os sentidos) se torna proprietária de um cinema em Paris, num desenlace que escancara a paixão avassaladora do realizador tanto pela materialidade do cinema (película, bobinas, nitrato) quanto pela experiência que é ver Pabst, Max Linder ou Leni Riefenstahl na tela grande.

Enquanto isso, Tarantino faz jus ao título do filme com Brad Pitt e seu grupo de soldados judeus fazendo da guerra uma questão muito particular. A marca profunda de uma suástica feita na testa dos nazistas que escapam vivos da tropa (como gados marcados a ferro e fogo) é algo bem perturbador, e se aqui não jorra sangue como em Kill Bill, a brutalidade vem carregada de carga simbólica muito forte. Outra prova disso é a seqüência da taverna, a qual parte de um jogo de adivinhação por cartas e culmina em banho de sangue. Ali, a troca de sinais, sejam eles de qualquer natureza, é traiçoeira, os disfarces começam a sufocar e, de uma vez, todos caem no chão. O exterminador de oficiais da Gestapo Hugo Stiglitz (Til Schweiger) é notável nesse ponto: os cutucões que ele recebe de um major nacional-socialista (August Diehl) na mesa do bar emulam uma falsa camaradagem, logo associada à tortura – e no primeiro sinal que tudo dará errado, ele estoura os colhões do outro e crava-lhe logo uma faca no pescoço com o prazer de quem conseguiu o selo que faltava à sua coleção.

O filme, não poderia deixar de ser, tem seu clímax no cinema de Shosanna, na sala particular de Tarantino (“Le Gamaar”), talvez a verdadeira musa de sua obra até agora. A paixão com que cada cartaz na parede é colocado em quadro, a valsa da grua que valoriza as escadarias, o hall, a movimentação dos espectadores pelo espaço, os detalhes – nada foge ao abraço generoso desenhado pela câmera febril do cineasta e de seu fotógrafo, Robert Richardson. Dá vontade de morar ali naquela sala de projeção, ouvindo a voz da judia francesa ecoar ameaçadora, com seu rosto imenso ainda sobrevivendo no meio do fogo, materializando-se na fumaça que reflete a luz dos projetores – a imagem de cinema viva e plena como nunca.

2 comentários:

  1. "O filme, não poderia deixar de ser, tem seu clímax no cinema de Shosanna, na sala particular de Tarantino (“Le Gamaar”), talvez a verdadeira musa de sua obra até agora"

    Fico imaginando se a Uma Thurman não ficou puta pelo tarantino não ter lembrado dela para nenhum papel, principalmente o da Kruger, claro. hehe

    ResponderExcluir
  2. Olá! Parabéns pelo blog!
    Acho que este do Tarantino será futuramente uma referencia, mesmo eu que não sou nada fã de seu cinema gostei bastante deste, ainda mais porque o Pitt se mostra a cada ano mais e mais versatil! Vou te add a minha pagina, abraços!

    http://clubcinefilo.blogspot.com/

    ResponderExcluir