segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Full Metal Jacket: A assombrosa crônica de guerra de Kubrick


Stanley Kubrick se tornou atemporal por uma razão principal que hoje certamente seria praticamente impossível exercer: o longo tempo que ele deixava seus projetos amadurecendo. Assim como o tempo é o maior responsável por destruir ou agregar valor a um filme já lançado, ele também é fator fundamental para reavaliar cada minúcia de um filme muito antes de ser produzido. Certamente o que para alguns seria uma tortura, e destruiria a urgência que uma dada abordagem temática pediria (o caso de lançar um filme no “calor da discussão”), para Kubrick era vital – e foi o que ocorreu com os sete anos em que desenvolveu Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987), até hoje um filme que mantém sua precisão, sua secura e sua urgência no que diz respeito à análise da insanidade da guerra.

O filme, desde o primeiro ato, aborda seus personagens com o distanciamento que de maneira alguma é sinônimo de imparcialidade, de não comprometimento. Se o recente O Leitor, de Stephen Daldry, é um filme medíocre exatamente por revelar, por parte de seu diretor, um olhar desinteressado, morno, didático (como se quisesse apenas descrever os horrores do holocausto a uma platéia leiga), enfim, distante – no sentido covarde do termo – Kubrick se utiliza de sua frieza para dissecar, como navalha afiada, o horror (ou a mentalidade do horror) de todo o processo da guerra.

Nascido Para Matar é, talvez, um dos filmes mais duros de Stanley Kubrick, na medida em que não constrói uma narrativa da guerra, mas uma crônica das mais avassaladoras, que escancara a brutalidade e a loucura de um conflito armado que teve resultado constrangedor para os Estados Unidos. O inimigo representado pela garota sniper vietnamita é uma imagem icônica nesse sentido, por todo assombro e choque que causa num grupo de homens cuja virilidade é evidenciada até nos nomes – Cowboy e Animal Mother, por exemplo. Joker, interpretado com louvor por Matthew Modine, evoca outro ícone da masculinidade, John Wayne, no quartel (“Is this you, John Wayne? Is this me?”) – e essa piada vem repleta de significado uma vez que Wayne é um dos símbolos máximos do faroeste, gênero americano por excelência, e este, por sua vez, projeção dos ideais de conquista, de vitória, de coragem, de desbravamento tão tipicamente americanos que são prontamente desmontados por Kubrick, quando lembramos a vergonha histórica que a derrota dos EUA representa até hoje ao povo americano.

O segundo e terceiro atos vem repleto de uma energia incomum para os filmes de guerra feitos até então, evidenciando o aspecto de crônica quando Kubrick mostra uma equipe de filmagem que vai registrar a ação dos mariners. E a resposta do soldado Cowboy é sintomática quando ele diz que não encontrou um único cavalo no país inteiro – os Estados Unidos não conquistaram absolutamente nada no sudeste asiático; o John Wayne que havia dentro cada um deles simplesmente não veio à tona, a cidade de Hué foi “desbravada” de cabo a rabo e o maior percalço encontrado foi justamente uma adolescente que atira pelos buracos no concreto. É difícil descrever o espanto que a imagem da menina, assustada, causa em nós, espectadores. Kubrick canaliza nessa cena toda a fúria de seu filme, desde o impacto da fotografia, que remete a uma espécie de ritual religioso, aos closes nos rostos dos atores, que revelam o misto de choque, raiva e alívio que sentem por eliminar o alvo que, agora de perto, é tão inofensivo, infantil, ingênuo. Um tiro de misericórdia nunca foi tão doloroso – mesmo acontecendo fora de quadro. A marcha e o coro infantil (“Mickey Mouse!”), ao fim, se revelam a única maneira de expurgar o inferno de morte, fogo e sangue que o pelotão viveu até então – depois de eliminar a garota, o único jeito é tentar de alguma forma revive-la dentro de cada um. Porque, afinal, o sentimento de culpa existe, apesar de todos terem saído inteiros de uma batalha inútil. Kubrick faz gelar a espinha cada vez que revisitamos essa sua obra – o que deveria ser feito obrigatoriamente ao menos uma vez por mês.

2 comentários:

  1. Coincidência, coloquei ontem a maravilhosa e terrível cena de Gomer Pyle no banheiro. Abs!

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  2. Murilo, falando em Kubrick, vc já escreveu sobre a pérola Barry Lyndon? Caso tenha, me passa o link.

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