sábado, 10 de janeiro de 2009

Original Stories - Parte I

Centenário de Morte

por Murilo Conte de Lima


Faziam exatamente cem anos da morte de D. Pedro I. Era um rei-momo. Convidado ao cerimonial, num dos castelos mais detalhados de Portugal, fui de bom grado. Peguei um táxi até a esquina do referido local. Desci, com as pernas meio bambas, sabe-se lá o porquê, mas foi a única coisa que senti quando saí do carro. Queria ir caminhando naquele um quarteirão, e ainda economizava alguns centavos da corrida. Os táxis curiosamente estavam dourados, e pensei que aquilo fosse apenas uma impressão, tudo muito passageiro. Caminhei alguns passos e, dos meus joelhos, fortes e rápidos, surgiam espasmos de tremedeira; a saliência dos ossos, exageradas. Olhei para o semáforo da esquina, estava azul. Nada demais. Cheguei à recepção. Usava uma calça marinho com pregas, uma camisa xadrez reluzente. Entrei, não havia guardas.

No hall que dava acesso ao vasto salão onde o cerimonial fúnebre ocorria, haviam algumas senhoras vestidas de vermelho num dos cantos, três para ser específico, que acariciavam de forma curiosamente nervosa uma estátua de pedra. O piso era de mármore deslumbrante, da cor do plasma, ou da aurora. Fui me aproximando daquele espaço enorme, cujas paredes revelavam entalhes de madeira que datavam do século XV. Meus sapatos estavam brilhosos, exageradamente lisos, e na minha viçosa curiosidade de observar aquele comportamento insólito, escorreguei. Meu dedo médio entrou no brinco de uma delas, enganchado, e com a força impiedosa da gravidade, rasguei violentamente uma das orelhas. A mulher caiu paralelamente a mim e, com a cabeça repousada ao lado de meus pés, começou a estrebuchar-se convulsivamente. A dor parecia-lhe atacar de tal modo que se podia ouvir o sangue escorrendo por aquele belo chão polido. A posição de suas mãos juntamente à cabeça remetia a figura de alguém que estava louco para ouvir o que acontecia do outro lado de uma parede; espionagem. Ela se contorcia de modo que eu não podia mais ver o lado esquerdo de seu rosto, colado no chão de maneira monstruosamente magnética, como ímã em geladeira.

Fiquei paralisado por uns trinta e cinco minutos, antes de finalmente levantar-me cambaleando, agora não só os joelhos, mas as duas pernas inteiras estremecendo me davam sensação sufocante de agonia e desespero. Corri em direção ao salão. Dois vasos enormes de cristal adornavam a entrada, com rosas gigantescas em seu interior. Monumentais, convergiam ao fundo, no túmulo do rei. O recinto, estranhamente vazio, parecia abrigar alguns poucos vultos saudosistas. Avistei uma senhora que parecia guardar fervorosamente aquele mausoléu. Todo revestido de ouro, cuidadosa e intensamente polido, mas com os cantos descascados. No chão, farelos de tinta seca.

Aproximei-me vagaroso. Meu olhar convergia junto aos vasos, mas meu pensamento voava longe. Sem hesitar, quase colei meu rosto ao da senhora, observando-a com o rigor de um maestro e a loucura de um homicida. Vertia lágrimas, a água escorria sobre seu nariz, cujo osso aparentemente quebrado criava um desvio para que o líquido vestisse lentamente suas faces exageradamente rugosas. Não entendi a tristeza daquela mulher, muito menos diante de alguém em estado de putrefação há cem anos. Perguntei, respondeu que não havia parentesco, nem distante. Frustrado, voltei ao hall. Minha pele estava da cor de um afresco azul-claro observado de longe, pálido, mudo.

Voltei à rua de entrada: lá estava o motorista, caído ao lado da porta do passageiro, bêbado, mas engasgado de sangue. Seu corpo desenhava à vista de quem passava algo como um alce alvejado com um tiro pelas costas. Dobrado, cabeça curvada para o lado esquerdo, o pobre homem gorgolejava frases abstratas, incompreensíveis ao mais cuidadoso ouvinte. Seus olhos, vazios e banhados anormalmente por um emaranhado avermelhado de veias, já davam sinais de que até os gorgolejos afobados iriam cessar. Já morto, corri e abri a porta do lado oposto. Absurdamente próximo do pedal da embreagem repousavam três mini garrafas de uísque barato. No console, três moedas, ainda cheirando a suor velho e borracha. Um broche encravado numa das entradas de ar-condicionado dizia: “Good Morning!”. No assento do passageiro, a espuma amarela transbordava através do talho no tecido. Apressado, puxei o cadáver para dentro. As pernas e os pés agora repousavam sobre o banco; a coluna dobrada e os braços arranhados e sujos de asfalto descansavam sobre a barriga ensangüentada. Olhei para o corpo disposto daquela forma medonha, e um arrepio frígido subiu-me pela espinha.

Num impulso, empurrei violentamente com o pé todas as garrafas e desobstruí a embreagem para que pudesse engatar a primeira marcha e sair. Dei a partida, mas o motor não respondia, apenas emitia sons morbidamente similares aos gorgolejos do motorista. Tentei mais algumas vezes, mas o carro continuava ali, à frente do palácio, como um dos vultos a observar o rei, paralisado dentro de seu estado calamitoso. O táxi estava, de fato, dourado, não era nada provisório como senti inicialmente. Não conseguia desviar o olhar daquele corpo, ali, tão próximo de mim como nos dias em que os motoristas conduziam os avós e netos para o parque mais próximo, sendo que o senhor sempre se sentava no assento dianteiro, lado a lado com o condutor, e iniciava conversas calorosas no caminho sobre sua infância no campo, as pescas aventurescas nos riachos profundamente azuis e cintilantes ou o prazer em cuidar das três crianças.

Meu corpo estava descompensado, e não conseguia de maneira alguma restabelecer o equilíbrio mental, tanto menos físico. O dia havia me deixado com desgaste imensurável, desde os pés que latejavam como se cada um carregasse dentro de si um coração arrítmico, até a cabeça, dentro da qual os pensamentos borbulhavam com a ansiedade de um jovem expedicionário, porém com a constatação cansada da frustração.

Foi então que liguei o rádio, o único consolo dentro de um veículo cuja situação deprimente me paralisou de tanto cansaço. A música começou etérea, como um hino celestial, e a voz serena que narrava a estória da inundação de Atlântida se estendeu por minutos, com sua entonação mitológica, e a leveza que atravessava os ouvidos prazerosamente, como um sopro de vento fresco umedecido com o orvalho matinal de setembro. A melodia finalizava com refrões apaixonados sobre uma mulher que estava lá no fundo das águas, louca para ser resgatada, chegar à superfície e deter o dilúvio que levava aquele belo pedaço de terra ao esquecimento, à insignificância histórica e ao saudosismo sentimental oco. Que poder era esse, ele não sabia. Mas sentiu uma onda de calor percorrer toda sua espinha repentinamente, num oposto ao que sentia quando olhava, mesmo de relance, àquela figura triste e morbidamente posicionada ao seu lado. O segundo gole do uísque já não o esquentou tão mais quanto o primeiro; o ardor agora parecia planar de um lado ao outro de seu corpo, constante como a chama de um balão.

A marcha fúnebre tocou. A senhora de orelha rasgada saiu, sendo amparada pela outra cujo nariz carregava o osso sulcado. Ambas pareceram-lhe fazer um leve aceno, o qual ele respondeu cordialmente com um gesto de clemência. Mesmo naquele estado de torpor, ele conseguiu enxergar uma pequena abertura ao lado do painel, envolta em metal e já levemente corroída pela ferrugem. Pegou uma das moedas e a inseriu ali, despretensiosamente. Foi então que, numa surpresa particularmente abstrata, viu os comandos do carro se ligarem; o painel agora iluminou-se como um suntuoso letreiro de neon púrpura, e o motor roncava harmoniosamente. As senhoras, que contornavam o veículo pela parte traseira, foram igualmente surpreendidas por um intenso solavanco, cuja força as derrubou no asfalto de relevo perversamente acidentado e escuro, cujas cavidades irregulares formavam pequenas lombadas finas, as quais configuravam o formato de uma lâmina afiada. Os pescoços de ambas foram perfurados.

(continua)

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