por Murilo Conte de Lima
Insone, ele conseguiu engatar a primeira marcha, ainda não percebendo a tragédia que havia ocorrido logo atrás. Talvez não pudesse suportar se tivesse visto, e nesse momento, sua ignorância se tornou preciosa. Na janela do passageiro, alguns corvos começavam a pousar, e se dispunham numa fila ávida por aquele cheiro que lhes atravessava o apetite. Simplesmente acelerou; seus braços dormentes não permitiam que guiasse o volante, e este se tornou uma entidade involuntária. O carro acelerava, enquanto Atlântida, ainda inundada, esperava pela sua salvação. Naquela pressa, não se poderia saber o resultado final: se as águas, intrépidas, dariam a trégua necessária para que aquele pedaço de terra sobrevivesse. A natureza tinha sua força, mesmo trágica e repentina. E foi de súbito que o veículo encheu-se d’água, e uma enorme onda o tomou por baixo e o impulsionou para acima dos prédios, dos pássaros, dos corvos. O táxi reluzia; o continente inundava como nunca. Flutuando, o corpo do rei estava a sua frente, como se impedisse sua passagem num oceano interminável e aberto. Estava monstruosamente inchado, exageradamente estufado como um enorme boneco de vodu.
Abriu a porta. Saiu nadando de costas. As horas já haviam passado, muitas. O céu lhe aparentava uma placa de poliestireno cheia de ranhuras e esparsamente corroída. Parecia que estavam bem próximas de seu rosto, aquelas nuvens ricamente texturizadas com o banho da luz do sol. Eram vividamente estruturadas naquele espaço infinito, e seus gomos, bojudos, palpáveis, macios como a melhor esponja, extraordinariamente aerados e doces; como se submetidas à maceração, provavelmente resultariam no perfume celestial ou na bebida definitiva. Quando se aproximou do rei, aquele objeto orgânico gélido, inchado, seu olhar pareceu serrar-lhe ao meio e liberar o odor da morte. Aquele aroma polvilhou todo o ar de forma fulminante, impregnou a espuma amarela e desbotada e exposta dos bancos do táxi, incrustou no tecido morto das pernas que repousavam no assento manchado do passageiro. Tudo estava tomado.
Ele tentou voltar ao táxi, mas Atlântida havia inundado por completo. Toda aquela água, porém, aplacou súbita e definitivamente toda molécula daquele cheiro, como uma seringa que suga com precisão milimétrica o sangue grosso e abundante de um homem gordo, e é tomada por aquele vermelho ofuscante. Se alguém pudesse olhar de cima, lá estaria ele, flutuando sem rumo, ao lado do cadáver já podre do rei.
Quando se deu conta, a música havia cessado. Seu olhar passeou de um lado a outro, e mirou na carcaça do táxi que boiava, distante. Ao redor, os objetos desprendidos do veículo formavam um círculo, que dançava conforme a correnteza os dispersava. Um relógio de parede, com um enorme tampo de vidro que cobria seus ponteiros, estava infestado de formigas. Ainda funcionava. Os dois alto-falantes do automóvel, emborrachados e adornados por uma borda de metal enferrujado, estavam ali soltando suas últimas vibrações, como um coração que luta para continuar palpitante.
Aquilo o intrigou de tal maneira que o incentivou nadar incansáveis metros para alcançá-los e para que ele pudesse ao menos se agarrar a algum fiapo de matéria. As águas imensas já o haviam exaurido, e ele já estava praticamente idêntico ao pobre taxista cujo corpo desaparecera naquela imensidão e levou junto o aroma fétido de carne morta. As duas caixas de som palpitantes ainda estremeciam e ele sentia que teria suas pupilas estouradas pelo azul interminável e ondulante antes que pudesse chegar ao objeto de sua curiosidade. Suas pernas cansadas, endurecidas como rochas, os músculos como fibras de carne seca emaranhados irreversivelmente num amontoado de nós. Seu corpo absolutamente drenado, branco, a pele dos dedos descascada profundamente, carne visível. Ao contrário das nuvens doces, o sal da água era impiedoso, e ele bebeu-a desgraçadamente.
Deu duas braçadas longas, e finamente conseguiu colar seus dedos nas duas pequenas fontes sonoras. Pegou-as como a duas metades de coco. Atrás, os fios desencapados. Fincou seu olhar e seu sorriso como uma enxada em terra macia. Em suas mãos, elas ainda vibravam em intervalos irregulares, tossindo, reverberando em socos abafados, mudos. Já estava completamente desfalecido, pernas e braços esticados, corpo cheio de sal, estufado como outro boneco de vodu, como outro rei completando seu centenário de morte nas águas. As roupas corroídas, a mulher de Atlântida havia se afogado. De barriga para baixo, com as mãos curvadas para a mesma direção, com os dois alto-falantes ainda colados aos dedos, as duas metades de coco com suas aberturas atoladas na água parecendo abafar o som.
Aconteceu um estrondo tremendo, luminoso e barulhento, cerimonial, ensurdecedor. Das duas mãos mortas, agora borbulhava sangue. Espesso, saía das caixas, voluptuoso, impressionante. Sangue de rouxinol.
Abriu a porta. Saiu nadando de costas. As horas já haviam passado, muitas. O céu lhe aparentava uma placa de poliestireno cheia de ranhuras e esparsamente corroída. Parecia que estavam bem próximas de seu rosto, aquelas nuvens ricamente texturizadas com o banho da luz do sol. Eram vividamente estruturadas naquele espaço infinito, e seus gomos, bojudos, palpáveis, macios como a melhor esponja, extraordinariamente aerados e doces; como se submetidas à maceração, provavelmente resultariam no perfume celestial ou na bebida definitiva. Quando se aproximou do rei, aquele objeto orgânico gélido, inchado, seu olhar pareceu serrar-lhe ao meio e liberar o odor da morte. Aquele aroma polvilhou todo o ar de forma fulminante, impregnou a espuma amarela e desbotada e exposta dos bancos do táxi, incrustou no tecido morto das pernas que repousavam no assento manchado do passageiro. Tudo estava tomado.
Ele tentou voltar ao táxi, mas Atlântida havia inundado por completo. Toda aquela água, porém, aplacou súbita e definitivamente toda molécula daquele cheiro, como uma seringa que suga com precisão milimétrica o sangue grosso e abundante de um homem gordo, e é tomada por aquele vermelho ofuscante. Se alguém pudesse olhar de cima, lá estaria ele, flutuando sem rumo, ao lado do cadáver já podre do rei.
Quando se deu conta, a música havia cessado. Seu olhar passeou de um lado a outro, e mirou na carcaça do táxi que boiava, distante. Ao redor, os objetos desprendidos do veículo formavam um círculo, que dançava conforme a correnteza os dispersava. Um relógio de parede, com um enorme tampo de vidro que cobria seus ponteiros, estava infestado de formigas. Ainda funcionava. Os dois alto-falantes do automóvel, emborrachados e adornados por uma borda de metal enferrujado, estavam ali soltando suas últimas vibrações, como um coração que luta para continuar palpitante.
Aquilo o intrigou de tal maneira que o incentivou nadar incansáveis metros para alcançá-los e para que ele pudesse ao menos se agarrar a algum fiapo de matéria. As águas imensas já o haviam exaurido, e ele já estava praticamente idêntico ao pobre taxista cujo corpo desaparecera naquela imensidão e levou junto o aroma fétido de carne morta. As duas caixas de som palpitantes ainda estremeciam e ele sentia que teria suas pupilas estouradas pelo azul interminável e ondulante antes que pudesse chegar ao objeto de sua curiosidade. Suas pernas cansadas, endurecidas como rochas, os músculos como fibras de carne seca emaranhados irreversivelmente num amontoado de nós. Seu corpo absolutamente drenado, branco, a pele dos dedos descascada profundamente, carne visível. Ao contrário das nuvens doces, o sal da água era impiedoso, e ele bebeu-a desgraçadamente.
Deu duas braçadas longas, e finamente conseguiu colar seus dedos nas duas pequenas fontes sonoras. Pegou-as como a duas metades de coco. Atrás, os fios desencapados. Fincou seu olhar e seu sorriso como uma enxada em terra macia. Em suas mãos, elas ainda vibravam em intervalos irregulares, tossindo, reverberando em socos abafados, mudos. Já estava completamente desfalecido, pernas e braços esticados, corpo cheio de sal, estufado como outro boneco de vodu, como outro rei completando seu centenário de morte nas águas. As roupas corroídas, a mulher de Atlântida havia se afogado. De barriga para baixo, com as mãos curvadas para a mesma direção, com os dois alto-falantes ainda colados aos dedos, as duas metades de coco com suas aberturas atoladas na água parecendo abafar o som.
Aconteceu um estrondo tremendo, luminoso e barulhento, cerimonial, ensurdecedor. Das duas mãos mortas, agora borbulhava sangue. Espesso, saía das caixas, voluptuoso, impressionante. Sangue de rouxinol.
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