sábado, 2 de junho de 2012

Dia do Faroeste

Queria levá-lo ao cinema, numa tarde de sábado. Muitos carregam como glórias a conquista de um campeonato, uma premiação que sacramente o sucesso na carreira e garanta uma promoção, ou mesmo heranças de fortunas incalculáveis, imóveis, carros e capital. Mas eu possuía apenas esse desejo: levá-lo ao cinema.

Um dia, quem sabe, poderíamos substituir os almoços tranquilos e fraternais, as festas tradicionais, os sabores que os avós põem à mesa, somente para realizar essa vontade. Ou mesmo conciliar todos esses eventos e, lá pelas cinco da tarde, caminhar até o cinema duas ou três quadras abaixo de nosso lugarejo de serena felicidade.

O cinema não de significados comuns, termos tecnicistas ou discussões duras. Não iria levá-lo para nada que não lhe provocasse genuína alegria. Meu avô nunca negou que gostava muito dos faroestes. Principalmente os de Clint Eastwood, em quem ele se via projetado – claro que com algumas ressalvas -, mas que percebia no olhar daquele personagem sem nome e de raras palavras uma firmeza de caráter indelével. Meu avô não era dos mais falantes.

O que “Três Homens em Conflito” poderia provocá-lo agora, quase cinquenta anos depois? Esta joia ele se orgulhava de tê-la assistido nos primórdios do Cine Cacique, uma sala de rua de incrível magnitude, cuja fachada generosamente banhada a neon amarelado lhe conferia imponência e subjugava os discretos estabelecimentos ao seu redor, até hoje.

Pois então era esse. A escolha não poderia ser melhor. O filme de Clint pede esta sala, e esta sala pede este filme. Não consigo imaginar qual será a emoção deste meu grande velho. Também impossível imaginar a minha própria como cinéfilo. Tenho medo de que os vinte minutos finais possam levar meu avô à exaustão emocional. Se ele não era um homem de lágrimas, aqui elas poderiam ser a apoteose de sua gloriosa trajetória.

Este sábado a tarde parecia não chegar nunca. Não posso dizer que realizei muitos preparativos. Cheguei a rever o filme na pequena tela de meu televisor, e logo que tocou “Il Trielo”, de Ennio Morricone, me veio um súbito pensamento: esse talvez fosse dos compositores favoritos do velho, e digo “talvez” porque ele não guardava nomes, mas, se bem me lembro, ele disse certa vez que uma das coisas que mais o impressionavam eram as “cavalgadas banhadas a melancolia”.

Minha tensão aumentava a cada dia e, se colocasse aos quatro ventos o motivo de meu nervosismo, poderia ser taxado de palerma. O dólar subindo assustadoramente, executivos se digladiando na saída da bolsa de Nova Iorque, um caso de morte nas escadarias de Wall Street. O mundo sufocado de crise, de caos, de ironia, de estupidez. Um mafioso no poder, ditando as novas regras da agiotagem. E mesmo assim, aqui estou eu preocupado com o colapso emocional de meu avô.

Decidi não programar exatamente em que sábado iríamos, meu avô e eu, até para que o convite se desenrolasse com naturalidade, no meio de uma conversa, ou entre um gole e outro de café. Ultimamente, percebi que ele quase não ficava muito em casa. Ele gostava de caminhar pela praça logo em frente à sala de cinema. Era arborizada, quieta, toda revitalizada. Caminhava em círculos e, depois de umas três voltas, sentava sobre um banco de madeira com vista privilegiada para os neons, ainda apagados àquela hora, o sol começando a morrer no horizonte. Acendia um cigarro de palha e ali ficava por horas, conversando com ninguém, apenas com alguns canários azuis que pousavam sobre as emendas de ferro entre uma tábua e outra. Era uma cena-símbolo de quietude e paz.

Numa sexta-feira, apenas como aperitivo, fui sozinho ao Cacique ver uma das comédias de Jerry Lewis. As sextas eram “as noites do riso”, e a sala se enchia de casais e famílias. A sessão acabou por volta das oito da noite, eu rindo como um louco, subindo as rampas que davam acesso à rua em meio ao frenesi generalizado. Cheguei ofegante à calçada, e foi quando parei e vi meu avô ainda ali, do outro lado da rua, sentado, sereno como se os risos da sala o tivessem contagiado profundamente, como se o canto dos canários tivessem invadido seu coração por completo. Já não me contendo de alegria, acenei com a mão, chamando-o ao meu encontro.

Ele apenas sorriu e, logo depois, começou a balbuciar algumas palavras. Distante e em meio a tanto barulho, sabia que não poderia ouvi-lo. Mas, nessa noite esplendorosa, nenhum neon foi capaz de ofuscá-lo. Lendo os seus lábios, consegui codificar suas palavras:

- Hoje não, filho, amanhã. Amanhã é o dia do faroeste.

Sorri de volta e, quando pensei em responder, ele apenas se deitou no banco, de barriga para cima, com as duas mãos por trás da cabeça, os canários azuis cedendo-lhe respeitosamente todo o espaço para seu pleno descanso.

- Sim, meu velho, então é amanhã. Amanhã você virá comigo ao cinema, e eu mal posso esperar.

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