quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Colosso

A crença que Werner Herzog tem nas suas imagens parece ser inabalável. Os planos tão belos, tão únicos não possuem um átimo de exibicionismo. As imagens parecem extrapolar o limite do quadro de maneira verdadeiramente forte, rica. Não é obra de quem busca significados, respostas ou metáforas imediatistas.

Digo isso porque é impossível ficar apático quando se termina uma sessão de Também Os Anões Começaram Pequenos (1970). A princípio, nos rendemos meio que involuntariamente pelo humor, o inusitado da situação que nos traz uma colônia de anões, prestes a se rebelarem, na ilha de Lanzarote, na Espanha. Já com algum tempo de filme, porém, Herzog engrossa o caldo e o tom anárquico, acidamente político, rapidamente toma conta.

Os anões, como se pode perceber, não estão à margem, muito pelo contrário. Eles são o centro da transformação: cadeiras, uma caixa com insetos, um pequeno furgão, uma vistosa palmeira são alterados para o bem e para o mal; esses instrumentos, ao contrário do que imaginamos, não limitam coisa alguma – deixam, sim, os indivíduos cada vez mais irascíveis, angustiados, com sede de espaço. É a laranja mecânica de Herzog, ainda mais amarga.

Um aspecto que me fisga em muitos dos filmes deste cineasta é seu talento alienígena para usar a câmera na mão, hoje tão banalizada. A urgência com que ele busca um close, em travellings levemente trôpegos, mas determinados, nos joga imediatamente no turbilhão da situação. O diretor alemão fez isso recentemente com Nicolas Cage em Vício Frenético, como discuti no post anterior, demonstrando de imediato a fragilidade do tenente, um estranho em seu próprio universo.

Aqui, ele se utiliza desse dispositivo para intensificar a ferocidade com que seus personagens buscam a afirmação através do caos, da destruição. O pátio repleto de flores queimadas, ou mesmo o furgão girando eternamente enquanto os anões rezam antes de uma refeição, em primeiro plano, causa estupor. Eles se impõem ao meio, o extrapolam, como Fitzcarraldo o fez ao içar, num processo exaustivo, seu barco floresta acima. Nenhuma novidade em se tratando de Herzog, mas em Também Os Anões... tudo é feito com aquele vigor inerente a um grande cineasta em início de carreira (este é seu segundo longa).

Decodificar um filme de Herzog é uma ação um tanto infrutífera, porque o que os seus filmes oferecem em imagem, interação, música possuem verdade acima de qualquer símbolo. Enfim, tentem ver, porque é foda.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Cinema de bravura


Analisar o cinema de Werner Herzog não é tarefa das mais fáceis. É um cineasta que sempre parece instaurar certo desequilíbrio dentro de suas narrativas, seja na mistura de registros que fazem seus filmes tomarem sempre um rumo que nunca esperamos, seja ao usar e subverter códigos pré-estabelecidos de uma cultura cinematográfica como a norte-americana.

Em Vício Frenético (The Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans, 2009), seu longa-metragem mais recente, cujas semelhanças com a obra homônima de Abel Ferrara se resumem apenas às linhas gerais do enredo, Herzog joga com os códigos do drama policial. E esse jogo vai muito além da ordem estético-narrativa: o diretor alemão imprime sua cadência, seu ritmo de maneira tão forte e particular que, se inicialmente tudo aparenta estar num constante desequilíbrio, como relatei, logo percebemos que é justamente essa habilidade, de controlar o incontrolável, de dar vazão aos impulsos sem deixar o filme sair dos trilhos, o aspecto fundamental que faz do cineasta responsável por Fitzcarraldo um gênio.


Nicolas Cage, no que talvez seja seu melhor desempenho em muito tempo, mergulha sem pudor nesse peculiar tour de force: seu Terence McDonagh acaba de ser promovido a tenente, e logo nesses primeiros minutos, há um momento emblemático: da rigidez do enquadramento que mostra o discurso do policial que irá condecorá-lo, Herzog corta para um plano de câmera na mão que, cambaleante, urgente até, vai “buscar” o rosto de McDonagh quase escondido entre os colegas de farda, demonstrando o sentimento de “despertencimento” daquela personagem de seu universo – contrariando sua aparente desenvoltura na cena que abre o filme.


Dessa miscelânea de tons aparentemente insolúveis, do humor alienígena e desconcertante a certa melancolia e lirismo que parece engolfar todo o filme, afinal – especificamente no retrato do que senti ser uma personagem profundamente triste (interpretada por Jennifer Coolidge), mais até do que Frankie (Eva Mendes) - Werner Herzog extrai com maestria um filme muito satisfatório para quem aprecia cinema de gênero, mantendo as linhas mestras do roteiro sempre muito estáveis, com subtramas interessantes e bem resolvidas, mas em paralelo promove uma outra viagem que constantemente confunde e coincide com a trama “concreta”. E é isso que torna Vício Frenético fascinante.


Dentro do filme de gênero, vale lembrar, Herzog alcança seu momento iconoclasta: encena um tiroteio absolutamente espetacular ao som da gaita nervosa de Sonny Terry (a mesma música do final de Stroszek, também dirigido pelo alemão, em 1977) e faz Cage soltar uma frase quase mítica, tão representativa de seu estado de espírito àquela altura. Tarantino ficaria com inveja.


Terence é histriônico, vulgar, brutal, carinhoso. Esse transtorno mental provocado pelo vício em analgésicos e cocaína é absorvido com muita convicção por Herzog, e o uso de animais, a cobra no início, os peixes no fim ou, principalmente, os iguanas, evidenciam esse sentimento com muita propriedade. O tenente está num eterno transe, e o modo como o diretor sabota o desfecho ‘feliz’ através do rumo que várias situações tomam, nos deixando num estado de confusão ainda maior, é brilhante. Nenhuma surpresa, aliás, vindo de um autêntico visionário, um cineasta que não se furta em mergulhar no paradoxo, no insólito e na loucura e nos deixar também completamente imersos.


O ano mal começa e já temos um belo exemplar no panteão dos melhores, sem uma gota de dúvida.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vampiros de Almas (Don Siegel, 1956)

No turbilhão de informações que ronda Avatar, sempre é bom voltar meio século e ver Don Siegel em plena forma em Vampiros de Almas (1956), fonte mestra de meio milhão de ficções científicas que vierem depois, inclusive da farofada de James Cameron.

Enxuto como poucos sabem ser, e ao mesmo tempo tão preciso nos cortes e na construção da tensão, Siegel vai direto ao ponto: um médico foi internado por ser tido como louco e, a partir daí, para provar sua sanidade, conta toda a história a um colega de profissão, que se desenrolará num longo flashback.

Don Siegel

Época turbulenta nos Estados Unidos, marcada pela Guerra Fria e o mccarthismo, a década de 1950 foi mais que adequada para o lançamento de filmes que exploravam desse tom paranóico em suas narrativas, a exemplo do primeiro Guerra dos Mundos (a propósito, cujo remake chorão de Spielberg ganhou um misterioso oitavo lugar na relação de melhores da década da revista francesa Cahiers du Cinema, publicada recentemente), O Dia em Que a Terra Parou, A Invasão dos Discos Voadores, The Brain From Planet Arous e outras pérolas.

Um dos grandes mentores de Clint Eastwood, Siegel dirige como um artesão meticuloso: planos sempre certeiros que estabelecem a base de sua narrativa (aqui num belo Superscope, 2:1) assim como o caráter dos personagens. Basta um close no médico (bela interpretação de Kevin McCarthy) junto de sua namorada (Dana Wynter) na janela do consultório, vendo a movimentação louca numa praça, ou mesmo o plano de Wilma, prima da moça, ao afirmar que seu tio não é seu tio, para apreendermos toda a tensão que a obra constrói através da expressão e do olhar.

Se Avatar metaforiza à sua maneira capenga e interminável a ocupação militar promovida pelos EUA e o terrorismo – o bombardeio a uma enorme árvore chamada “Home Tree” (Árvore-Lar), em certa altura, e a tomada subseqüente de sua esplendorosa queda é de doer, fora a chuva de cinzas – Siegel não precisa de mais de uma hora e vinte para nos deixar com a sensação de que quanto mais absurda a paranóia, mais real ela se mostra, para o nosso pavor. Isso sim é politicamente forte e assustador.

O workshop digital de James Cameron: Avatar

Não é muito difícil decifrar o que ocorre com Avatar. O filme é um rito de descoberta tanto para os personagens do filme quanto para o próprio diretor, James Cameron. Parece buscar a cada frame fazer valer o burburinho em torno do seu caráter revolucionário no uso da terceira dimensão. E isso ele consegue, não há dúvidas.

Ora, mas de que adianta tantas camadas “físicas” de imagem se o filme é tão plano na questão das idéias? Indiscutível a capacidade de encenador de Cameron, e isso ele não precisa mais provar. Ou melhor, ele precisa provar para a platéia, afinal, o porquê do brinquedo novo, o porquê do 3D.

Pareceu-me um grande filme de oportunidade, a exemplo do remake sonolento de O Dia Em Que A Terra Parou, com todo esse engodo ambientalista muito mal ajambrado dentro da narrativa. Aqui temos um ex-fuzileiro, Jake Sully (muito dignamente interpretado por Sam Worthington) que, paraplégico, assume o lugar do irmão gêmeo numa missão neste novo planeta, Pandora, controlando esse corpo artificial, o tal "avatar" Os militares americanos estão lá porque a terra é repleta de um metal valioso. A partir disso, reafirma-se sempre a mesma ladainha.

É inegável que o nível de detalhes desse novo mundo concebido pelo diretor é assombroso, um trabalho de design de produção hercúleo. A maior ausência, contudo, é de roteiro. Porque dessa equação muito desequilibrada o que sobra é apenas um belo e suntuoso workshop de efeitos digitais. Não se sabe muito bem aonde Cameron quer chegar misturando rituais zen-budistas com O Último dos Moicanos on acid – tudo isso numa infindável saraivada de informações visuais muti-camadas que, paradoxo maior, nunca preenchem o vazio dessas mesmas imagens.

O cinema de aventura/ação de Hollywood já foi capaz de coisa muito melhor, exemplo da desenvoltura de um Sam Raimi nos seus Homem-Aranha e o mesmo Cameron nos seus Exerminador do Futuro. São filmes em que o desejo de fazer cinema se mostram vívidos, os personagens pulsam, diferente deste em que tudo, surpreendentemente, parece tão tecnicamente meticuloso quanto burocrático, quase uma obrigação em se tirar idéias do papel, em ser pioneiro.

Não quero parecer arrogante nessas primeiras impressões, mas tudo isso me veio à mente durante e logo após a sessão da qual acabo de sair há poucas horas. Claro, parece ser um marco-zero, a partir do qual veremos se realmente todo esse desenvolvimento tecnológico veio apenas para inflar e disfarçar os buracos de filmes já ruins ou servir de adendo à gama criativa dos cineastas. Talvez até mereça uma revisão, mas a empolgação foi tão passageira quanto um jogo de videogame: jogamos, enjoamos, desligamos a TV e colocamos os controles no chão. Acabou, vamos dormir.

P.S.: Aliás, what the hell é aquela personagem de Michelle Rodriguez?

sábado, 9 de janeiro de 2010

Lições da Escuridão, de Werner Herzog



Até planejei começar o novo ano aqui com algum balanço das melhores coisas vistas em 2009, mas isso fica para um segundo momento. Depois de ter visto ontem três belos documentários de Werner Herzog, resolvi me ater a um que até agora me assalta a lembrança: Lições da Escuridão (1992), que o diretor alemão dirigiu à época do término da Guerra do Golfo, retratando através de um ponto-de-vista extraterrestre (no mais aterrador sentido de filme de horror, mais que ficção científica, que essa opção implica) os campos de petróleo incendiados do Kuwait, enquanto uma equipe tenta extinguir todo aquele fogo que brota da terra.



Todo musicado por Verdi, Mahler, Prokofieff entre outros grandes, Herzog desbrava aquele inferno negro de óleo e areia em tomadas vindas de outro planeta, tamanho o choque de beleza que recebemos de uma paisagem desoladora, tomada por máquinas que mais parecem animais selvagens ('dinossauros', como o filme registra em determinado momento). A narração do diretor é muito pontual, e suas poucas palavras são poéticas e questionadoras, até porque é mesmo muito difiícil definir esse 'êxtase da verdade' (expressão do próprio Herzog) o qual ele nos propõe testemunhar - não só aqui, mas em praticamente toda sua obra. Há dois depoimentos pontuais avassaladores, pra dizer o mínimo. Em um deles, uma mulher que perdeu a fala vendo os dois filhos torturados por soldados gesticula para tentar mostrar o que viu - é de ficar marcado a fogo no fundo da alma, o tipo de cena que parece sintetizar todo um século de barbáries inomináveis.



A propósito, há uma entrevista com Herzog aqui, na última edição da revista do sindicato dos diretores dos EUA (DGA). Vale a pena dar uma lida.